Um Cântico na Agonia
Se você tivesse certeza absoluta do que lhe aconteceria nos próximos dias, qual seria a sua atitude?
Qual foi a atitude de Jesus Cristo antes de sua crucificação, já sabendo o que O esperava no
dia seguinte?
Participou da Ceia com os apóstolos e depois cantou um hino
de louvor.
Tribulações irão surgir, quase que diariamente, mas saiba
manter-se tranqüilo ao ponto de poder cantar um hino de louvor, Um Cântico na
Agonia.
A diferença consiste em como enfrentá-las, contorná-las e
vencê-las. Seguindo o exemplo de Cristo, nós como cristãos devemos observar os
seus derradeiros atos em nosso meio. Diante das mais terríveis adversidades,
Jesus enfrentou-as com extrema paz e fé nas promessas do Pai.
"Viver é correr risco da tragédia". E seja capaz de
sempre poder entoar um Cântico na Agonia.
O que você faria hoje, se soubesse que amanhã se encontraria preso a mais terrível e indescritível crise existencial?
Se amanhã você se desse conta de que seu melhor e mais íntimo amigo lhe houvesse faltado ao dever humano e fraternal de solidariedade?
O que você faria se, de repente, aquela pessoa de quem você nem de longe desconfiara, na qual você tanto investiu e que tanto usufruiu de sua cultura, seus afetos, inclinações e bens maiores o traísse?
O que você faria se a religião na qual você foi criado, em
meio a qual foi inspirado, dentro da qual foi instruído, subitamente,
estabelecesse uma penalidade contra você?
Como você reagiria se, de hábito, se visse escarnecido,
vilipendiado, com a honra enxovalhada, a dignidade exposta a uma situação de
zombaria, motejo, galhofa e ironia?
O que faria se fosse alvo de grave violência física, de um
estupro, por exemplo, ou de uma surra absurda?
Qual seria a sua atitude se você tivesse certeza absoluta do
que lhe aconteceria nos próximos dias?
Houve um dia, na vida de Jesus, quando, olhando adiante, ele
só conseguia ver coisas absurdas e semelhantes a essas a que acabo de me
referir. Seu dia seguinte seria o dia do Getsêmani; dia da depressão, da
agonia; dia do encaramujar da alma; dia da vertiginosa descida à região mais
abissal; dia do choro, gemido, solidão profunda.
O dia seguinte seria aquele no qual faltaria a solidariedade
dos amigos. Ele gemeria, choraria, pediria, reclamaria; solicitaria apoio,
companhia, mas os amigos estariam dormindo. Voltaria a eles e em vão
questionaria: "Não pudestes vigiar comigo?
Não pudestes investir em mim sequer alguns minutos? Não
conseguistes vencer o sono? Será que a minha dor é menos importante que o
conforto e o sossego? Simão, tu dormes? Não pudeste vigiar comigo uma hora?
(Marcos 14:37)
O dia seguinte também foi dia de traição, dia no qual Judas Iscariotes -discípulo, apóstolo, amigo, amado - o troca por dinheiro. Judas que fora investido de autoridade, aquele a quem se descortina o reino de Deus, a quem é permitido sonhar com os que sonham na intervenção de Deus na história; alguém aquinhoado com poder divino para realizar curas, prodígios, expulsão de demônios; aquele que vivenciara realidades concretas da chegada e da demonstração do Reino.
E justamente ele que, em função de um bom negócio, trai
a amizade; é esse Judas que beija e apunhala. É ele que dá um susto - não um
susto no coração de quem não sabia o que ocorreria, mas um susto naquele que,
mesmo ciente do que iria suceder, reserva-se, ainda assim, o direito de
enfrentar cada momento da vida como cada momento da vida, com seus temores,
sonhos e ambigüidades.
O dia seguinte é o dia no qual a religião judaica - segundo a
qual foi criado, na qual aprendeu a ler (porque naqueles dias aprendia-se a ler
nas escolas rabínicas, lendo a Torá, ou Escrituras), sendo instruído desde a
mais tenra infância - após o julgamento, o acusa de herético, não recebe sua
mensagem, rejeita sua proposta, considera-o demoníaco, expurga-o.
O dia seguinte é o dia da negação, negação de um dos melhores
amigos, amigo que diante de uma situação pública afirma jamais tê-lo conhecido,
não ter com ele a menor relação, não guardar a lembrança de nenhum encontro;
não haver história entre eles, hipótese alguma de cumplicidade. Amigo que
declara: "Não sei quem é esse homem; jamais o vi, nunca lhe ouvi o nome;
tampouco andei com ele." Amigo que nega a fraternidade, o compromisso, a
paixão e o sonho comum.
O dia seguinte seria dia de preterição, de troca: "Que preferes, a Jesus, chamado Cristo, ou ao ladrão?" Seria dia no qual o poder público faria opção pelo corrupto, em vez do justo; pela devassidão, e não pela integridade. Seria dia no qual os sistemas e a máquina governamental, por questões políticas, entregariam o inocente para ser condenado e libertariam - com todas as condições de libertação e seus privilégios - o assassino.
Dia,
pois, de ser trocado de maneira vil; de ser escarnecido - soldados lhe poriam
uma coroa de espinhos na cabeça para brincar com a sua realeza (realeza, sim,
mas de dor). Colocar-lhe-iam na mão um caniço quebrável, como a dizer que o seu
cetro é o cetro da fraqueza. Vesti-lo-iam com um manto aparatoso, para
significar que tipo de rei era ele: rei-momo; rei-palhaço; rei do festival;
debochariam dele expondo-o a cenas ridículas. Para honrá-lo, cuspir-lhe-iam. A
fim de declararem sua sapiência profética, fechar-lhe-iam os olhos para lhe
perguntar: "Quem foi que te bateu?"
Sarcasmo, ironia. O dia seguinte é o dia da cruz. Dia da
violação. Dia da profanação física. Dia da agressão. Dia de ser trespassado.
Dia de ser objeto.
O que você faria, se soubesse que os três próximos dias da
sua vida seriam dessa qualidade? O que você faria, se soubesse que o que o
aguarda é a depressão, a facada, a traição, o agravo, a perfídia, a barganha, o
julgamento, a exclusão da instituição, o desprezo, a rejeição, a falta de
solidariedade e ingratidão dos que se afirmavam amigos?
O que você faria se nos próximos dias você perdesse o
emprego, ou lhe roubassem a posição em favor do maior corrupto, de pessoas mais
convenientes àquela posição? O que faria você, se amanhã fosse o dia do
escárnio, do desdém, da injúria, do descrédito, do enodoamento do seu nome, de
sua imagem e do seu caráter?
O que você faria, se amanhã, ao entrar no táxi, fosse vítima
de um ato sádico, um assalto pavoroso, um seqüestro? Ou fosse dia no qual seu
marido chegasse bêbado a casa, e tomado pelo machismo arrebentasse seu rosto,
esmurrasse-a, atirasse-a ao chão, enchendo-a de hematomas, ferindo-lhe os ouvidos
com palavrões e impropérios?
Tenho certeza de que não estou sendo irreal, nem estou
falando de coisas que não lhe digam respeito. Porque todos nós, de um modo ou
de outro, corremos sempre o risco de estarmos na iminência de sofrer algo desse
tipo.
Viver é correr o risco de tragédia. Estar vivo é estar
assistindo à possibilidade de conflito, traição, preterimento, negação, fraude,
injustiça, roubo, desonra, calúnia, violência, depressão e
"ilhamento".
Hoje, não sabemos o que nos pode acontecer amanhã ou depois. Mas o Cristo ao qual me refiro conhecia o futuro - se bem que não do ponto de vista de uma exacerbada onisciência, que lhe tirasse o direito e o privilégio de rir e de chorar, de alegrar-se ou de sofrer a cada instante, a ponto de a cada nova situação poder afirmar: "Eu já estava esperando que isso acontecesse..."
Porque o paradoxo da onisciência de Jesus é que ele sabe
tudo, mas vive tudo o que lhe acontece como se ignorasse que lhe ocorreria. É o
mistério que só se explica em Deus: saber tudo, e, no entanto, viver tudo com a
surpresa da chegada de cada coisa.
E qual a atitude de Jesus na véspera do tudo mal? Na véspera do trágico? Na véspera do tudo-nada?
Marcos conta, no cap. 14, v.22 e 23 que,
partindo o pão, ele disse: "Isto é o meu corpo"; e tomando o cálice,
acrescenta: "Isto é o meu sangue" - prova de que estava plenamente
consciente do que o aguardava. O v.26 diz mais:
"Tendo cantado um hino, saíram para o Monte das
Oliveiras".
O que esperava por Jesus era o ser ele partido, rasgado,
moído, ultrajado, usado. No entanto, ele canta um hino! E que hino era esse?
Era justamente o hino que o judeu cantava na Páscoa, o Salmo 115, que afirma o
amparo de Deus; salmo que admoesta:
"Não confieis em ídolos. Têm boca e não falam; têm olhos
e não vêem; têm ouvidos e não ouvem; têm nariz e não cheiram. Suas mãos não
apalpam; seus pés não andam; som nenhum lhes sai da garganta".
Ele exorta a que se confie no Senhor, em quem há amparo,
refúgio, conforto, segurança.
Parece ironia cantar um hino desses à véspera do que Cristo
sabia ser a moenda da sua alma, o trilhar do seu corpo, o lacerar e escalpelar
da sua carne. Sim, Jesus foi neste planeta o único homem que soube crer no que
Paulo articularia teologicamente mais tarde:
"Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem
daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu
propósito" (Rm 8:28).
Qualquer um só faz arremedar essa prática, somente Jesus de
Nazaré cantou antes da agonia; cantou louvores no gemido. E diga-se: em Cristo,
o cantar, antes de tudo, equivale a cantar depois. Porque ele canta não antes
da surpresa absoluta, mas sabendo o que está por vir. O que significa terminar
a cruz em louvor.
O que estará a vida fazendo em nós? Que estará ela fazendo de
nós? O que o chicotear, o deprimir, o esmagar, o humilhar, o tripudecer, o
caluniar, o escarnecer, o decepcionar, o desacreditar, o roubar, o espatifar de
ilusões estarão criando em nós?
Será que os gestos, jeitos, modos, palavras e tudo mais que a
vida nos negou, não estariam gerando em nosso ser uma alma desértica, um
coração duro, frio, incapaz do amor, da dádiva, da troca, do sossego e da paz?
Será que não teria arrancado de nós a capacidade de sonhar, de crer, de
renunciar e de ser grato? Ou ainda não teriam criado em nós uma mente inepta,
paralisada ao fervor e à adoração?
Será que os fatos e as ocorrências do dia seguinte estão
gerando em nós a idéia de que Deus tem o braço encolhido? Que ele é um Deus
impotente, inoperante e alienado; um Deus-ídolo?
Ou será que, por sua graça, seremos capazes de enfrentar o que vier, chorando e gemendo com louvor, com gratidão, na certeza de que aquilo que dói em nós, magoa e fere fundo; aquilo que nos embaraça e tonteia pelo impacto; que nos surpreende, decepciona e assusta, de maneira nenhuma revela e retrata a inoperância e pouco-caso de Deus, que não traduz sua fuga ou omissão.
Ao contrário, espelha a certeza de que, por trás do que se pode chamar bueiro
da dor, espasmo da decepção, negrume da solidão, haverá finalmente a estrada em
direção ao único Pai - o único Amigo - e à única vitória e certeza.
Certeza que nos capacita a viver apesar do desamor e
abandono, da aflição da perda irrecuperável; apesar do nojo e horror do amigo
traiçoeiro e traidor, do tédio da eterna criatividade vestida de pavão e corpo
de gralha; enfim, apesar da tristeza de tanto que iria ser e nunca foi, ou
parece ser e não é - nem nunca será.
Cristo canta a ressurreição. Ele canta a intervenção, celebra
a vitória antes dela.
Meu grande desejo é que, de alguma forma, o Espírito do
Senhor nos ajude a cantar um hino e sair... Sair para lutar! Sair para batalhar
pela felicidade, alegria e independência a que temos direito. Sair, enfim, para
viver a própria vida! Faça a vida a careta que fizer, use contra nós as armas
que usar, empunhe em nossa direção as foices traiçoeiras e devastadoras que
quiser. Pois, apoiados ao muro da esperança, em Deus, iremos de peito aberto
contra todo choque e toda cilada, celebrando de antemão a vitória, a
interferência e o amparo do Todo-Poderoso, em meio à agonia.
Saia para glorificar o nome de Jesus, cantando antes, durante
e depois!
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