sexta-feira, 10 de junho de 2022

Um Cântico na Agonia

 

Um Cântico na Agonia

Se você tivesse certeza absoluta do que lhe aconteceria nos próximos dias, qual seria a sua atitude?

Qual foi a atitude de Jesus Cristo antes de sua  crucificação, já sabendo o que O esperava no dia seguinte?

Participou da Ceia com os apóstolos e depois cantou um hino de louvor.

Tribulações irão surgir, quase que diariamente, mas saiba manter-se tranqüilo ao ponto de poder cantar um hino de louvor, Um Cântico na Agonia.

 Tragédias não escolhem hora, lugar ou pessoas. Simplesmente se abatem sobre nós. Diariamente temos contato ou conhecimento delas.

A diferença consiste em como enfrentá-las, contorná-las e vencê-las. Seguindo o exemplo de Cristo, nós como cristãos devemos observar os seus derradeiros atos em nosso meio. Diante das mais terríveis adversidades, Jesus enfrentou-as com extrema paz e fé nas promessas do Pai.

"Viver é correr risco da tragédia". E seja capaz de sempre poder entoar um Cântico na Agonia.

O que você faria hoje, se soubesse que amanhã se encontraria preso a mais terrível e indescritível crise existencial? 

Se amanhã você se desse conta de que seu melhor e mais íntimo amigo lhe houvesse faltado ao dever humano e fraternal de solidariedade? 

O que você faria se, de repente, aquela pessoa de quem você nem de longe desconfiara, na qual você tanto investiu e que tanto usufruiu de sua cultura, seus afetos, inclinações e bens maiores o traísse?

O que você faria se a religião na qual você foi criado, em meio a qual foi inspirado, dentro da qual foi instruído, subitamente, estabelecesse uma penalidade contra você?

Como você reagiria se, de hábito, se visse escarnecido, vilipendiado, com a honra enxovalhada, a dignidade exposta a uma situação de zombaria, motejo, galhofa e ironia?

O que faria se fosse alvo de grave violência física, de um estupro, por exemplo, ou de uma surra absurda?

Qual seria a sua atitude se você tivesse certeza absoluta do que lhe aconteceria nos próximos dias?

Houve um dia, na vida de Jesus, quando, olhando adiante, ele só conseguia ver coisas absurdas e semelhantes a essas a que acabo de me referir. Seu dia seguinte seria o dia do Getsêmani; dia da depressão, da agonia; dia do encaramujar da alma; dia da vertiginosa descida à região mais abissal; dia do choro, gemido, solidão profunda.

O dia seguinte seria aquele no qual faltaria a solidariedade dos amigos. Ele gemeria, choraria, pediria, reclamaria; solicitaria apoio, companhia, mas os amigos estariam dormindo. Voltaria a eles e em vão questionaria: "Não pudestes vigiar comigo?

Não pudestes investir em mim sequer alguns minutos? Não conseguistes vencer o sono? Será que a minha dor é menos importante que o conforto e o sossego? Simão, tu dormes? Não pudeste vigiar comigo uma hora? (Marcos 14:37)

O dia seguinte também foi dia de traição, dia no qual Judas Iscariotes -discípulo, apóstolo, amigo, amado - o troca por dinheiro. Judas que fora investido de autoridade, aquele a quem se descortina o reino de Deus, a quem é permitido sonhar com os que sonham na intervenção de Deus na história; alguém aquinhoado com poder divino para realizar curas, prodígios, expulsão de demônios; aquele que vivenciara realidades concretas da chegada e da demonstração do Reino. 

E justamente ele que, em função de um bom negócio, trai a amizade; é esse Judas que beija e apunhala. É ele que dá um susto - não um susto no coração de quem não sabia o que ocorreria, mas um susto naquele que, mesmo ciente do que iria suceder, reserva-se, ainda assim, o direito de enfrentar cada momento da vida como cada momento da vida, com seus temores, sonhos e ambigüidades.

O dia seguinte é o dia no qual a religião judaica - segundo a qual foi criado, na qual aprendeu a ler (porque naqueles dias aprendia-se a ler nas escolas rabínicas, lendo a Torá, ou Escrituras), sendo instruído desde a mais tenra infância - após o julgamento, o acusa de herético, não recebe sua mensagem, rejeita sua proposta, considera-o demoníaco, expurga-o.

O dia seguinte é o dia da negação, negação de um dos melhores amigos, amigo que diante de uma situação pública afirma jamais tê-lo conhecido, não ter com ele a menor relação, não guardar a lembrança de nenhum encontro; não haver história entre eles, hipótese alguma de cumplicidade. Amigo que declara: "Não sei quem é esse homem; jamais o vi, nunca lhe ouvi o nome; tampouco andei com ele." Amigo que nega a fraternidade, o compromisso, a paixão e o sonho comum.

O dia seguinte seria dia de preterição, de troca: "Que preferes, a Jesus, chamado Cristo, ou ao ladrão?" Seria dia no qual o poder público faria opção pelo corrupto, em vez do justo; pela devassidão, e não pela integridade. Seria dia no qual os sistemas e a máquina governamental, por questões políticas, entregariam o inocente para ser condenado e libertariam - com todas as condições de libertação e seus privilégios - o assassino. 

Dia, pois, de ser trocado de maneira vil; de ser escarnecido - soldados lhe poriam uma coroa de espinhos na cabeça para brincar com a sua realeza (realeza, sim, mas de dor). Colocar-lhe-iam na mão um caniço quebrável, como a dizer que o seu cetro é o cetro da fraqueza. Vesti-lo-iam com um manto aparatoso, para significar que tipo de rei era ele: rei-momo; rei-palhaço; rei do festival; debochariam dele expondo-o a cenas ridículas. Para honrá-lo, cuspir-lhe-iam. A fim de declararem sua sapiência profética, fechar-lhe-iam os olhos para lhe perguntar: "Quem foi que te bateu?"

Sarcasmo, ironia. O dia seguinte é o dia da cruz. Dia da violação. Dia da profanação física. Dia da agressão. Dia de ser trespassado. Dia de ser objeto.

O que você faria, se soubesse que os três próximos dias da sua vida seriam dessa qualidade? O que você faria, se soubesse que o que o aguarda é a depressão, a facada, a traição, o agravo, a perfídia, a barganha, o julgamento, a exclusão da instituição, o desprezo, a rejeição, a falta de solidariedade e ingratidão dos que se afirmavam amigos?

O que você faria se nos próximos dias você perdesse o emprego, ou lhe roubassem a posição em favor do maior corrupto, de pessoas mais convenientes àquela posição? O que faria você, se amanhã fosse o dia do escárnio, do desdém, da injúria, do descrédito, do enodoamento do seu nome, de sua imagem e do seu caráter?

O que você faria, se amanhã, ao entrar no táxi, fosse vítima de um ato sádico, um assalto pavoroso, um seqüestro? Ou fosse dia no qual seu marido chegasse bêbado a casa, e tomado pelo machismo arrebentasse seu rosto, esmurrasse-a, atirasse-a ao chão, enchendo-a de hematomas, ferindo-lhe os ouvidos com palavrões e impropérios?

Tenho certeza de que não estou sendo irreal, nem estou falando de coisas que não lhe digam respeito. Porque todos nós, de um modo ou de outro, corremos sempre o risco de estarmos na iminência de sofrer algo desse tipo.

Viver é correr o risco de tragédia. Estar vivo é estar assistindo à possibilidade de conflito, traição, preterimento, negação, fraude, injustiça, roubo, desonra, calúnia, violência, depressão e "ilhamento".

Hoje, não sabemos o que nos pode acontecer amanhã ou depois. Mas o Cristo ao qual me refiro conhecia o futuro - se bem que não do ponto de vista de uma exacerbada onisciência, que lhe tirasse o direito e o privilégio de rir e de chorar, de alegrar-se ou de sofrer a cada instante, a ponto de a cada nova situação poder afirmar: "Eu já estava esperando que isso acontecesse..."

 Porque o paradoxo da onisciência de Jesus é que ele sabe tudo, mas vive tudo o que lhe acontece como se ignorasse que lhe ocorreria. É o mistério que só se explica em Deus: saber tudo, e, no entanto, viver tudo com a surpresa da chegada de cada coisa.

E qual a atitude de Jesus na véspera do tudo mal? Na véspera do trágico? Na véspera do tudo-nada? 

Marcos conta, no cap. 14, v.22 e 23 que, partindo o pão, ele disse: "Isto é o meu corpo"; e tomando o cálice, acrescenta: "Isto é o meu sangue" - prova de que estava plenamente consciente do que o aguardava. O v.26 diz mais:

"Tendo cantado um hino, saíram para o Monte das Oliveiras".

O que esperava por Jesus era o ser ele partido, rasgado, moído, ultrajado, usado. No entanto, ele canta um hino! E que hino era esse? Era justamente o hino que o judeu cantava na Páscoa, o Salmo 115, que afirma o amparo de Deus; salmo que admoesta:

"Não confieis em ídolos. Têm boca e não falam; têm olhos e não vêem; têm ouvidos e não ouvem; têm nariz e não cheiram. Suas mãos não apalpam; seus pés não andam; som nenhum lhes sai da garganta".

Ele exorta a que se confie no Senhor, em quem há amparo, refúgio, conforto, segurança.

Parece ironia cantar um hino desses à véspera do que Cristo sabia ser a moenda da sua alma, o trilhar do seu corpo, o lacerar e escalpelar da sua carne. Sim, Jesus foi neste planeta o único homem que soube crer no que Paulo articularia teologicamente mais tarde:

"Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito" (Rm 8:28).

Qualquer um só faz arremedar essa prática, somente Jesus de Nazaré cantou antes da agonia; cantou louvores no gemido. E diga-se: em Cristo, o cantar, antes de tudo, equivale a cantar depois. Porque ele canta não antes da surpresa absoluta, mas sabendo o que está por vir. O que significa terminar a cruz em louvor.

O que estará a vida fazendo em nós? Que estará ela fazendo de nós? O que o chicotear, o deprimir, o esmagar, o humilhar, o tripudecer, o caluniar, o escarnecer, o decepcionar, o desacreditar, o roubar, o espatifar de ilusões estarão criando em nós?

Será que os gestos, jeitos, modos, palavras e tudo mais que a vida nos negou, não estariam gerando em nosso ser uma alma desértica, um coração duro, frio, incapaz do amor, da dádiva, da troca, do sossego e da paz? Será que não teria arrancado de nós a capacidade de sonhar, de crer, de renunciar e de ser grato? Ou ainda não teriam criado em nós uma mente inepta, paralisada ao fervor e à adoração?

Será que os fatos e as ocorrências do dia seguinte estão gerando em nós a idéia de que Deus tem o braço encolhido? Que ele é um Deus impotente, inoperante e alienado; um Deus-ídolo?

Ou será que, por sua graça, seremos capazes de enfrentar o que vier, chorando e gemendo com louvor, com gratidão, na certeza de que aquilo que dói em nós, magoa e fere fundo; aquilo que nos embaraça e tonteia pelo impacto; que nos surpreende, decepciona e assusta, de maneira nenhuma revela e retrata a inoperância e pouco-caso de Deus, que não traduz sua fuga ou omissão. 

Ao contrário, espelha a certeza de que, por trás do que se pode chamar bueiro da dor, espasmo da decepção, negrume da solidão, haverá finalmente a estrada em direção ao único Pai - o único Amigo - e à única vitória e certeza.

Certeza que nos capacita a viver apesar do desamor e abandono, da aflição da perda irrecuperável; apesar do nojo e horror do amigo traiçoeiro e traidor, do tédio da eterna criatividade vestida de pavão e corpo de gralha; enfim, apesar da tristeza de tanto que iria ser e nunca foi, ou parece ser e não é - nem nunca será.

Cristo canta a ressurreição. Ele canta a intervenção, celebra a vitória antes dela.

Meu grande desejo é que, de alguma forma, o Espírito do Senhor nos ajude a cantar um hino e sair... Sair para lutar! Sair para batalhar pela felicidade, alegria e independência a que temos direito. Sair, enfim, para viver a própria vida! Faça a vida a careta que fizer, use contra nós as armas que usar, empunhe em nossa direção as foices traiçoeiras e devastadoras que quiser. Pois, apoiados ao muro da esperança, em Deus, iremos de peito aberto contra todo choque e toda cilada, celebrando de antemão a vitória, a interferência e o amparo do Todo-Poderoso, em meio à agonia.

Saia para glorificar o nome de Jesus, cantando antes, durante e depois!


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