A IMAGEM E O ORIGINAL
Deus
criou o homem, macho e fêmea, á sua própria imagem: isso é uma questão de fé.
Durante séculos, nossos antepassados esforçaram-se para se aperfeiçoar á imagem
de Deus: isso é uma questão histórica. Durante os longos séculos em que o Deus
dos judeus e dos cristãos constituiu a realidade última do Ocidente, europeus
e, mais tarde, americanos procuraram conscientemente nele se moldar.
Acreditavam que conseguiriam transformar a si mesmos em cópias melhores do
original divino, e empenharam-se diligentemente nessa tarefa. Imitatio Dei, a imitação de Deus,
constituía categoria central da piedade hebraica. A imitação de Cristo, Deus feito homem, era
igualmente central para os cristãos.
Muita gente no Ocidente não acredita mais em Deus, mas a crença perdida, assim como uma fortuna perdida, tem efeitos duradouros. Um jovem que cresce na riqueza pode, quando atinge a maioridade, doar toda a sua fortuna e viver na pobreza. Seu caráter, porém, continuará sendo o de um homem criado na riqueza, uma vez que não pode livrar-se de sua história. De forma semelhante, séculos de rigorosa moldagem do caráter á imagem de Deus criou um ideal de caráter humano que ainda hoje é forte, mesmo que para muitos seus fundamentos tenham sido removidos.
Quando ocidentais encontram uma cultura com ideais diferentes, quando dizemos , por exemplo: “Os japoneses são diferentes”, descobrimos, indiretamente, quão estranho e duradouro é nosso próprio ideal, a idéia que herdamos de como deve ser um ser humano. Em inúmeros aspectos externos, o Japão e o Ocidente passam a se parecer. Os japoneses comem carne vermelho; os ocidentais comem sushi.
Os japoneses usam terno; o quimono passou a fazer parte do
vocabulário ocidental. No entanto, persiste uma profunda diferença, pois o
Japão usava um espelho religioso-cultural diferente durante os séculos em que o
Deus da Bíblia serviu de espelho para o Ocidente. Este assunto sobre o homem
procura colocar o espelho bíblico, limpo e polido, nas mãos de nossos alunos.
Para
os não-ocidentais, o conhecimento do Deus venerado no Ocidente abre uma via
direta para o cerne e para a origem do ideal ocidental de caráter. Para os
próprios ocidentais, um conhecimento aprofundado desse Deus pode servir para
tornar conscientes e sofisticadas coisa que permanecem inconscientes e
ingênuas. De certa forma, somos todos imigrantes do passado. E assim como um
imigrante que retorna, depois de muitos anos, á terra onde nasceu pode enxergar
seu próprio rosto no rosto de estranhos,
assim também o homem ocidental moderno, secular, pode sentir um tremor de
reconhecimento na presença do antigo protagonista da Bíblia.
Como
pode um não-crente chegar á presença de Deus? De geração em geração, o judaísmo
e o cristianismo transmitiram seu conhecimento de Deus de diversas maneiras.
Para poucos, existiram e ainda existem as exigentes e ás vezes esotéricas
disciplinas do ascetismo, do misticismo e da teologia.
Os
filósofos da religião afirmam ás vezes que todos os deuses são projeções da
personalidade humana, e pode ser que isso seja verdade. Mas nesse caso devemos
ao menos reconhecer o fato empírico de que muitos seres humanos, ao invés de
projetarem as suas personalidades em deuses criados inteiramente por eles
próprios, preferem introjetar - imprimir em si próprios - as projeções
religiosas de outras personalidades humanas.
É por isso que a religião desperta tamanha fascinação, inveja e (ás vezes) raiva em escritores e críticos literários que se dedicam demais ao assunto. A religião - a religião ocidental em particular - pode ser considerada como uma obra literária mais bem sucedida do que qualquer autor ousaria sonhar. Qualquer personagem que “ganhe vida” numa obra de arte literária exerce algum grau de influência sobre as pessoas reais que lêem essa obra.
O Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, obra em que o
personagem-título toma por modelo a literatura popular de sua época, t raça um
retrato cômico e pungente desse processo em ação. Cervantes sem dúvida meditou
sobre a influência que sua própria obra viria a Ter, e mostra o seu Dom Quixote
“real” encontrando pessoas que
conhecem um personagem literário com esse mesmo nome. Em nossos dias, milhões
de pessoas misturam a vida real dos artistas de cinema com suas vidas
fictícias, e atribuem a essa cominação uma importância maior do que a que
concedem a qualquer ser humano real que de fato conheçam, sofrendo as
melancólicas conseqüências dessa atitude. Sua carne é triste, sim, e elas assistiram a todos os
filmes.
Nenhum personagem, porém - no palco, na página ou na tela, jamais teve o sucesso que Deus sempre teve. No Ocidente, Deus é mais que um nome familiar, ele é, queira-se ou não, um membro virtual da família ocidental. Pais que não querem saber dele não conseguem impedir que seus filhos venham a conhecê-lo, pois não só todo mundo já ouviu falar dele, como todo mundo, mesmo hoje em dia, tem algo a dizer a seu respeito.
O dramaturgo Neil Simon publicou há alguns anos uma
comédia, God’s favorite, inspirada
no Livro de Jó da Bíblia. Das
pessoas que assistiram á peça, poucas haviam lido o livro bíblico, mas isso não
era preciso: já sabiam como era Deus para poderem entender as piadas. Se nada
for sério, nada será engraçado, escreveu Oscar Wilde. De onde veio a imagem de
Deus que os espectadores da Broadway tinham em mento ao rirem da peça de Simon?
Veio inteiramente da Bíblia e, em termos mais especificamente humanos, daqueles que escreveram a Bíblia. Aos olhos da fé, a Bíblia não é só um conjunto de palavras sobre Deus, é também a Palavra de Deus: Ele é seu autor e seu protagonista. Não importa se os antigos autores da Bíblia inventaram Deus ou meramente registraram as revelações de Deus sobre si mesmo: sua obra atingiu, em termos literários, um estrondoso sucesso. Ela vem senso lida em voz alta, toda semana, há 2 mil anos, para platéias que recebem com total seriedade, procurando conscientemente assimilar ao máximo a sua influência. Sob esse aspecto, não tem paralelos na literatura ocidental e provavelmente em nenhuma literatura.
O
Corão vem imediatamente á cabeça, mas os muçulmanos não consideram o Corão como
literatura: essa obra ocupa, para eles, um nicho metafísico todo próprio. Os
judeus e cristãos, ao contrário, mesmo reverenciando a Bíblia como algo mais
que mera literatura, não negam que ela é
também literária e concordam, em geral, que ela pode ser assim
apreciada sem blasfêmia.
A apreciação religiosa da Bíblia coloca como foco central e explícito a bondade de Deus. Judeus e cristãos adoram Deus como origem de toda virtude, fonte de justiça, sabedoria, misericórdia, paciência, força e amor. Mas implícita e perifericamente foram se acostumando __ e depois, ao longo do séculos, também se apegando __ a algo que podemos chamar de ansiedade de Deus. Deus é um amálgama de diversas personalidades num único personagem. A tensão entre essas personalidades faz com que Deus seja difícil, mas faz também que seja atraente, e até mesmo viciante. Ao emular conscientemente suas virtudes, o Ocidente assimilou de modo inconsciente essa tensão entre unidade e multiplicidade.
No fim das contas, apesar do desejo que os ocidentais ás vezes manifestam de um ideal humano mais simples, menos ansioso, mas “centrado”, as únicas pessoas que achamos satisfatoriamente reais são aquelas cujas identidades contêm diversas subidentidades aglomeradas num todo. Quando nós, ocidentais, procuramos nos conhecer pessoalmente, é isso que procuramos descobrir uns sobre os outros. Na cultura ocidental, a incongruência e o conflito interno não são apenas permitido, chegam quase a ser exigidos. Pessoas meramente capazes de desempenhar vários papéis não correspondem a esse ideal.
Elas têm personalidade
__ ou repertório de personalidades __
mas não têm caráter. Pessoas simples sem complicações, que sabem claramente quem
são e assumem um papel determinado sem relutar, também não correspondem a esse
ideal. Podemos admirar sua paz interior, mas no Ocidente jamais as imitaremos.
Centradas ou centradas demais, elas têm caráter, mas pouca personalidade.
Entediam-nos como nós mesmos nos entediaríamos se fôssemos como elas.
Tornamos
as coisas assim tão difíceis para nós mesmos porque nossos antepassados viam a
si próprios como imagem de um Deus que, na verdade, havia complicado as coisas
para si de maneira semelhante. O monoteísmo reconhece um único Deus: “Ouvi, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o
Senhor é um”. A Bíblia insiste na unidade de Deus mais do que em qualquer
outra coisa. Deus é a Rocha das Idades, a integridade em pessoa. E, no entanto,
esse mesmo ser combina diversas
personalidades. Mera unidade (caráter penas) ou mera multiplicidade
(personalidade apenas) seriam bem mais fáceis. Mas ele é ambas as coisas e
assim a imagem do humano que dele deriva (O
HOMEM) exige ambas as coisas.
É estranho dizer isso, mas Deus não e nenhum santo. Muitas objeções podem ser feitas a seu respeito e já houve várias tentativas de melhorá-lo (as religiões assim fazem). Muitas coisas que a Bíblia diz a seu respeito raramente são pregadas no púlpito porque, se examinadas mais de perto, seriam um escândalo. Mas, mesmo que só parte da Bíblia seja ativamente pregada, nenhuma de suas parte é contestada.
Em qualquer página da Bíblia, Deus continua sendo o que sempre foi:
o original da FÉ de nossos pais, cuja imagem ainda vive dentro de nós como um
ideal secular difícil mas dinâmico. A originalidade de Deus é contagiante e o
seu amor pelo HOMEM nos faz, através
deste, conhece-lo, isto é, através do HOMEM
podemos conhecer DEUS.
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