A Unidade da Pessoa de
Cristo
[...]
Como temos visto,
durante toda a história da igreja, sempre houve aqueles que têm negado a
divindade de Cristo e aqueles que têm negado sua humanidade. É também o caso
que sempre houve aqueles que têm negado a visão bíblica da união das duas
naturezas em uma Pessoa. Antes do que meramente distinguir entre as duas
naturezas de Cristo, o Nestorianismo [1] do quinto século dividiu Cristo em
duas pessoas separadas. O Nestorianismo foi condenado no Concílio de Éfeso
(431). Os eutiquianos do quinto século, por outro lado, afirmaram que após a
encarnação havia somente uma natureza em Cristo. Essa natureza não era nem
completamente humana, nem completamente divina. Antes, a união produziu uma
mistura das duas naturezas numa terceira natureza misturada, uma tertium
quid. Essa visão, que é também conhecida como monofisitismo (“uma
natureza”), foi condenada no Concílio de Caldedônia (451 d.C.).
A visão bíblica da
unidade da Pessoa de Cristo é ensinada na Confissão de Westminster (8:2),
que declara de Cristo que “as duas naturezas, inteiras, perfeitas e distintas —
a divindade e a humanidade — foram inseparavelmente unidas em uma só Pessoa ,
sem conversão, composição ou confusão; essa Pessoa é verdadeiro Deus e
verdadeiro homem, porém, um só Cristo, o único Mediador entre Deus e o homem”.
Os teólogos chamam
a união das naturezas divina e humana de Jesus Cristo numa única Pessoa de
união hipostática. Na encarnação, como ensinado pela Confissão, o eterno
Filho de Deus tomou sobre si uma verdadeira natureza humana. Desde então, Jesus
Cristo é, e sempre será, uma Pessoa (isto é, um Deus-homem), com duas naturezas
auto-conscientes: uma divina e uma humana.
Mas aqui é onde a
dificuldade se levanta. A declaração do credo de Calcedônia, citado acima,
juntamente com muito do “Cristianismo” popular, tem uma visão diferente. Essa
visão mantém que a partir do tempo da encarnação, a Segunda Pessoa da Divindade
é uma Pessoa divina com duas naturezas: uma divina e uma humana. Louis
Berkhof, um advogado dessa visão, explica: “Há apenas uma Pessoa no Mediador, e
essa Pessoa é o imutável Filho de Deus. Na encarnação ele não se transformou
numa pessoa humana; ele simplesmente assumiu uma natureza humana, a qual não se
desenvolveu numa personalidade humana, mas se tornou pessoal na Pessoa do
Filho. A Pessoa única divina, que possuía uma natureza divina desde a
eternidade, assumiu uma natureza humana e agora tem duas”. [2] Augustus Strong
está de acordo com Berkhof. Ele conclui que a Pessoa única divina assumiu uma
natureza humana impessoal. Em outras palavras, ele não se uniu com uma pessoa
humana, mas com uma natureza humana “sem personalidade”.[3]
Nessa visão, a
Pessoa única não é o Deus-homem, mas a Segunda Pessoa da Divindade. A
dificuldade, então, é que se Jesus Cristo tem duas naturezas completas, uma
plenamente divina e outra plenamente humana, e, todavia, ele é uma Pessoa
divina indivisa, como essa Pessoa pode ser genuinamente humana?
Isto é, se Jesus
Cristo é, como ensinado em Hebreus 2:17, e afirmado pela declaração do
credo de Calcedônia, “em todas as coisas semelhante a nós”, como ele não é uma
pessoa humana? Se ele, como Calcedônia apropriadamente afirma, tomou sobre si
uma natureza humana de forma que, “segundo a humanidade”, ele é “em todas as
coisas semelhante a nós”, então ele tinha um corpo humano e uma alma humana.
Não é ele então uma pessoa humana? Afinal, a Bíblia repetidamente reivindica
que ele não é apenas uma natureza humana; ele é “o homem Cristo Jesus” (
1 Timóteo 2:5).
Além do mais, se a
Pessoa auto-consciente do Deus-homem é a Segunda Pessoa da Trindade, como a
maioria do “Cristianismo” popular afirma, então a natureza humana não seria
auto-consciente. Todavia, em Lucas 2:52 lemos que Jesus crescia, não somente
em “estatura” (isto é, fisicamente), mas também “em sabedoria” (mentalmente),
mostrando assim que a natureza humana (pois a natureza divina, sendo
onisciente, não pode crescer) de Jesus tinha uma consciência. Mas se o
Deus-homem tinha duas consciências, então ele é duas pessoas: divina e humana.
[4]
Essa foi a questão
com a qual Nestório lutou. E, como Thomas Morris apontou, outros pensadores
cristão primitivos, tais como Gregório de Nyssa (c. 330-395), Gregório de
Nazianzo (329-389), e Cirilo de Alexandria (falecido em 444), também viram esse
problema. Eles não foram tão longe como os Nestorianos ao ponto de reivindicar
que Cristo tinha duas pessoas separadas. Mas eles sustentaram o que Morris
chama de “a visão das duas mentes de Cristo”. [5] É irracional, assim diziam
esses estudiosos, manter que o Deus-homem tinha somente uma auto-consciência
divina. Se esse fosse o caso, ele não poderia ser plenamente homem.
A resposta para
esse problema tem sido abismal. Tristemente, um modo típico de aliviar a dificuldade
tem sido a abordagem kierkegardiana: coloque-a no mundo do paradoxo lógico.
Outra solução é descartar o ensino bíblico de que Deus é impassional, e sugerir
que a Segunda Pessoa da Divindade realmente sofreu sobre a cruz.
Essas, certamente,
não são soluções reais de forma alguma. No último livro que ele escreveu, The
Incarnation , [6] Gordon Clark tentou decifrar esse enigma. De acordo com o
Dr. Clark, “o erro fatal” nessa questão é a ausência de definições. Como o
credo de Calcedôcia, e como os outros, definem “pessoa”? Como “natureza” é
definida? Aqui reside a dificuldade. [7] Aparentemente, quando os teólogos
primitivos estavam formulando a doutrina da encarnação, os termos usados foram
de certa forma ambíguos. Mas devemos nos guardar contra qualquer alegada
solução que não forneça a humanidade plena de Jesus Cristo. E falar da
humanidade de Cristo como uma natureza humana impessoal (se é que existe tal
coisa), que se torna pessoal na encarnação, não resolve o problema. Além do
mais, se a natureza se torna pessoal na Pessoa do Filho, então ela é uma pessoa
humana.
O Dr. Clark faz
algumas perguntas muito relevantes: “Se Jesus não era uma pessoa humana, quem
ou o que sofreu na cruz? A Segunda Pessoa [da Trindade] não poderia ter
sofrido, pois a divindade é impassional... Se então a Segunda Pessoa não podia
sofrer, poderia uma natureza [humana impessoal] sofrer?”. [8]
O Dr. Clark
continua: “Pelo contrário, somente... uma pessoa pode sofrer”. Além do mais,
ele pondera, visto que a Bíblia nos ensina que Cristo possuía uma consciência
humana, mente e coração, e vontade, como ele pode não ser uma pessoa?”. A
salvação dos eleitos é realizada “pela alegada morte de uma natureza [humana]
impessoal?”. Não, diz Clark, “aquele que morreu sobre a cruz foi um homem, ele
tinha ou era uma alma, ele era um ser humano, uma Pessoa”. [9]
John Murray, um
advogado da visão de Calcedônia, viu, todavia, as dificuldades com as
“definições”. Ele escreve:
Talvez ao termo
“Pessoa” possa ser dado uma conotação em nosso contexto moderno, e aplicado à
natureza humana de Cristo, sem chocar através disso a unidade de sua Pessoa
divina-humana. Em outras palavras, o termo “natureza” pode ser muito abstrato
para expressar tudo o que pertence à sua humanidade e o termo “Pessoa” é necessário
para expressar a humanidade que é verdadeira e apropriadamente sua. [10]
O presente escritor
está de acordo com Clark e Murray sobre esse ponto. Parece melhor, se vamos
reter a linguagem clássica sobre esse assunto (isto é, Pessoa e natureza),
dizer com a Confissão de Westminster (8:2) que Jesus possui “ duas
naturezas, inteiras, perfeitas e distintas — a divindade e a humanidade”, isto
é, que ele é totalmente Deus e totalmente homem. E que na encarnação essas duas
naturezas “foram inseparavelmente unidas em uma só Pessoa , sem conversão,
composição ou confusão; essa Pessoa é verdadeiro Deus e verdadeiro homem,
porém, um só Cristo, o único Mediador entre Deus e o homem”. Isto é, há um
Senhor Jesus Cristo, um Deus-homem (isto é, a Pessoa única), que possui duas
naturezas distintas e inseparáveis, ambas das quais devem ser consideradas
“pessoais”, visto que ele é completamente divino e completamente humano. Não há
nada impessoal sobre a natureza divina ou humana. De outra forma, Jesus Cristo
não poderia ser completamente Deus, nem completamente homem. Quanto à sua
humanidade, Cristo tinha uma mente ou alma humana, e um corpo humano. Ele é “o Homem
Cristo Jesus” ( 1 Timóteo 2:5).
É importante
apontar também que no tempo da encarnação, a natureza divina de Jesus Cristo,
sendo imutável, não poderia e não passou por nenhuma mudança. Ele não colocou
de lado nenhum dos atributos divinos quando ele tomou sobre si uma natureza
humana. De fato, ele na poderia ter feito isso e ainda permanecer divino. Como
Wayne Grudem afirma, “nenhum mestre reconhecido nos primeiros 1800 anos de
história da igreja... [creu] que o Filho de Deus [na encarnação] abandonou
alguns dos seus atributos divinos”.[11]
[...]
por
Dr. W. Gary Crampton
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