Nossa dignidade humana
O
valor intrínseco dos seres humanos é afirmado desde o primeiro capítulo da
Bíblia.
Também
disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha
ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam sobre a
terra.
Criou Deus,
pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
E
Deus os abençoou, e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra
e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, e sobre
todo animal que rasteja pela terra.
Há
muito tempo persiste o debate acerca do que significa a "imagem" ou
"semelhança" divina nos seres humanos, e onde jaz sua superioridade. Keith Thomas
juntou uma porção de idéias exóticas em seu livro Man and the Natural World
(O Homem e o Mundo Natural). Ele destaca, por exemplo, que o ser humano foi descrito por
Aristóteles como um animal político, por Thomas Willis como um animal que ri,
por Benjamin Franklin como um animal que faz ferramentas, por Edmund Burke como
um animal religioso e pelo gourmet James Boswell como um animal que cozinha.
Outros autores têm se concentrado em alguma característica física do ser
humano. Platão explorou muito a nossa postura ereta, concluindo que os animais
olham para baixo, mas só os seres humanos olham para o céu, enquanto
Aristóteles acrescentou a peculiaridade de que só os seres humanos não
conseguem agitar as orelhas. Um médico escocês mostrou-se profundamente impressionado com os nossos
intestinos, ou seja, com suas "sinuosas circunvoluções, curvas e
reviravoltas", ao passo que em fins do século XVIII Uvedale Price chamou
atenção para o nosso nariz: "Creio que o homem é o único animal que tem
uma acentuada protuberância bem no meio da face."
Os
estudiosos que conhecem bem o antigo Egito e a Assíria antiga, no entanto,
salientam que nessas culturas o rei ou imperador era tido como a
"imagem" de Deus, a quem representava aqui na terra, e que os reis
mandavam erigir imagens suas em suas províncias para simbolizar a extensão de
sua autoridade. Foi dentro desse contexto que Deus, o Criador, confiou uma
espécie de responsabilidade real (ou pelo menos vice-real) a todos os seres
humanos, designando-os para "dominarem" sobre a terra e suas
criaturas e "coroando-os", para isso, de "glória e honra".
No
decorrer da narrativa de Gênesis 1 fica claro que é a imagem ou semelhança
divina que distingue os humanos (o clímax da criação) dos animais (cuja criação
é registrada antes). Implica-se uma continuidade entre humanos e animais. Eles
compartilham, por exemplo, "o fôlego da vida" e a responsabilidade de reproduzir-se.]
Mas havia também entre eles uma radical descontinuidade, ao se dizer que os
seres humanos são "como Deus". Essa ênfase na distinção singular
entre humanos e animais repete-se constantemente por toda a Escritura, sob
dois diferentes tipos de argumento.
Deveríamos nos envergonhar, tanto quando
os seres humanos comportam-se como animais, baixando ao nível destes, como
quando os animais se comportam como seres humanos, agindo muito melhor pelo
instinto do que nós pela capacidade de escolher. Um exemplo do primeiro caso é
que homens e mulheres não devem ser "embrutecidos e ignorantes",
comportando-se "como um irracional", ou então "como o cavalo ou
a mula, sem entendimento, os quais com freios e cabrestos são dominados".
Como exemplo do segundo caso, nós somos repreendidos pelo fato de bois e
jumentos reconhecerem os seus donos muito melhor do que nós, e porque as aves de migração, ao deixarem suas casas, retornam muito mais
facilmente do que nós, e as formigas são muito mais trabalhadoras e previdentes do que nós.
Voltando
aos primeiros capítulos de Génesis, todas as maneiras de Deus lidar com Adão e
Eva pressupõem a unicidade destes entre as criaturas de Deus. A forma como Deus
se dirige a eles pressupõe que eles o compreendem. Ele lhes diz que frutos
podem comer e quais não podem comer, certo de que eles são capazes de discernir
entre uma permissão e uma proibição e escolher entre as duas.
Ele plantou o
jardim e depois colocou Adão ali "para o cultivar e guardar", iniciando assim entre eles uma parceria consciente e responsável no cultivo do
solo. Criou-os macho e fêmea, declarou que a solidão não era uma coisa boa,
instituiu o matrimônio para a realização do amor dos dois e abençoou
sua união. Além disso, ele "passeava no jardim pela viração do dia",
deliciando-se com a sua companhia, e sentiu falta dos dois quando se esconderam
dele.
Portanto, não é de admirar que estes cinco privilégios (compreensão,
escolha moral, criatividade, amor e comunhão com Deus) sejam todos regularmente
mencionados nas Escrituras e continuem a ser reconhecidos no mundo contemporâneo
como constitutivos da distinção singular da nossa "humanidade".
Para
começar, existe a nossa racionalidade autoconsciente. Não se trata
apenas de sermos capazes de pensar e raciocinar — afinal de contas, poderíamos
dizer, os computadores também fazem isso. Eles são capazes de realizar os
cálculos mais fantásticos, e muito mais rápido do que nós. Além disso, têm um
tipo de memória (podem arquivar informações) e um tipo de linguagem (podem
comunicar seus achados). Mas ainda existe (graças a Deus!) uma coisa que eles
não podem fazer: eles não podem gerar pensamentos novos; só podem
"pensar" aquilo para o qual foram programados.
Os seres humanos,
contudo, são pensadores originais. E mais do que isso. Nós podemos fazer aquilo
que nós (autor e leitor) estamos fazendo neste exato momento: podemos nos
colocar fora de nós mesmos e olhar para o nosso interior, avaliar-nos,
indagar-nos quem e o que somos. Somos autoconscientes e temos autocrítica. Além
disso, vivemos inquirindo, incansavelmente, acerca do universo. Está certo
que, como disse a outro um certo cientista, "astronomicamente falando, o
homem é infinitamente pequeno". "É verdade", respondeu seu
colega; "só que, astronomicamente falando, o homem é que é o
astrônomo."
A
seguir vem a nossa capacidade de fazer opções morais. O ser humano é um
ser moral. Embora nossa consciência reflita nossa formação e cultura (sendo,
portanto, falível), ela no entanto permanece alerta dentro de nós, como uma
sentinela, advertindo-nos de que há uma diferença entre o certo e o errado. Ela
é mais do que uma voz interior. Representa uma ordem moral fora e acima de nós,
diante da qual nós sentimos uma obrigação, de tal forma que temos um estranho
impulso para fazer o que percebemos ser direito, bem como sentimentos de culpa
quando fazemos o que é errado.
Todo o nosso vocabulário moral (ordens e
proibições, valores e opções, obrigação, consciência, liberdade e vontade,
certo e errado, culpa e vergonha) não tem o menor sentido para os animais. É
verdade que podemos treinar um cachorro para que ele saiba o que pode fazer e o
que é proibido. E aí, quando ele desobedece e, instintivamente, se afasta de
nós, todo encolhidinho, pode-se até dizer que ele parece "sentir-se
culpado". Mas ele não tem a mínima noção de culpa — a única coisa que sabe
é que vai apanhar.
Em
terceiro lugar, vem o nosso poder de criatividade artística. Deus não só
nos chama para uma mordomia responsável em relação ao meio ambiente, e a uma
parceria com ele mesmo no que tange ao domínio e exploração da natureza para o
bem comum; ele nos deu também, através da ciência e da arte, habilidades
inovadoras para fazê-lo. Somos "criaturas criativas". Isto é, como
criaturas, nós dependemos do nosso Criador. Porém, tendo sido criados à
semelhança do nosso Criador, ele nos deu o desejo e a capacidade de sermos
também criadores. Portanto, nós dançamos, escrevemos poemas e fazemos música.
Podemos apreciar o que agrada aos olhos, ao ouvido e ao nosso toque.
Depois
vem a nossa capacidade para relacionamentos de amor. Deus disse: "Façamos
o homem à nossa imagem ... Criou Deus, pois, o homem à sua imagem ... macho e
fêmea os criou."
Embora
devamos cuidar para não deduzir deste texto mais do que realmente ele diz,
certamente é legítimo dizer que a pluralidade intrínseca do Criador ("Façamos
o homem") foi expressa na pluralidade das suas criaturas ("macho e
fêmea os criou"). Ela tornou-se ainda mais clara quando Jesus orou por seu
próprio povo, "a fim de que todos sejam um, como és tu, ó Pai, em mim e eu
em ti".
E esta unidade de amor é uma peculiaridade do ser humano. E claro que todos os
animais se acasalam, muitos deles estabelecem fortes laços entre o casal, a maioria cuida dos
seus filhotes e alguns deles são gregários. Mas o amor que une entre si os
seres humanos é mais do que um instinto, mais do que um distúrbio das glândulas
endócrinas. Ele tem inspirado a maior das artes, o maior dos heroísmos, a mais
profunda das devoções. O próprio Deus é amor, e nossas experiências de amor são
um reflexo essencial da nossa semelhança com ele.
Em
quinto lugar, temos a nossa insaciável sede de Deus. Todo ser humano tem
consciência de uma realidade pessoal suprema, a quem nós procuramos, e que
sabemos que somente na relação com ele é que podemos nos realizar como seres
humanos. Mesmo quando estamos fugindo de Deus, sabemos instintivamente que não
existe para nós outro lugar de repouso, nem outro lar. Sem ele nós estamos
perdidos, a vida não passa de refugo. Nossa maior nobreza reside na nossa
capacidade criada de conhecer a Deus, de nos relacionarmos pessoalmente com
ele, amá-lo e adorá-lo. Na verdade, nós só somos plena e verdadeiramente
humanos quando dobramos os nossos joelhos diante do nosso Criador. (John
Stott)
E
nestas coisas, pois, que jaz a nossa humanidade distintiva: em nossas
capacidades dadas por Deus para pensar, escolher, criar, amar e adorar.
"No animal", pelo contrário, escreveu Emil Brunner, "não vemos o
menor indício de tendência de buscar a verdade por amor à verdade, de moldar a
beleza por amor à beleza, de promover a justiça por amor à justiça, de
reverenciar o Santo por amor da sua santidade... O animal nada conhece 'acima'
de sua esfera imediata de existência, nada pelo qual medir ou testar sua
existência... A diferença entre animais e seres humanos abrange toda uma dimensão
de existência."
Não é de
admirar que Shakespeare tenha feito Hamlet irromper em seu elogio: "Que obra de arte é o
homem! Quão nobre em raciocínio! Quão infinito em suas faculdades! Quão
semelhante aos anjos na ação! No entendimento, quão semelhante a Deus! Oh, a beleza
do mundo! O protótipo dos animais!"
Como
eu gostaria de poder parar aqui e que pudéssemos passar o resto de nossas vidas
resplandescendo na mais pura auto-estima! Mas eis que existe um outro lado,
mais escuro, do nosso ser, do qual mal temos consciência e para o qual o
próprio Jesus chamou atenção.
JOHN STOTT (OUÇA O MUNDO, OUÇA O ESPÌRITO)
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