Atos dos Apóstolos: Luz para o caminho da Igreja hoje
A nossa
tarefa: O nosso objetivo, nesse texto, é responder à pergunta: Os Atos dos
Apóstolos podem realmente trazer luz para os cristãos e as comunidades
eclesiais HOJE? Faz sentido comparar a experiência dos primeiros cristãos, de
quase dois mil anos atrás, com os desafios de hoje, no início do terceiro
milênio?
Pressupomos um
conhecimento mínimo dos Atos: a leitura do próprio livro na Bíblia ou de um
breve comentário, como aquele do encarte do "Jornal de Opinião" (Os
pilares da Igreja segundo os Atos dos Apóstolos ou de um dos livros lá
indicados).
Também não
procuraremos fazer uma leitura ingênua e superficial, que pretenda
"copiar" hoje os "atos" dos Apóstolos. Procuraremos mostrar
como, num contexto diverso (o nosso, o de hoje) continuam valendo princípios,
critérios e orientações que o Espírito inspirou à Igreja das origens e ao
redator dos Atos.
O nosso
roteiro de trabalho:O nosso roteiro de trabalho incluirá uma breve reflexão
sobre a influência exercida pelo Atos no passado e duas partes:
I - OS
DESAFIOS ATUAIS DO CRISTIANISMO
Nesta parte,
faremos alusão a quatro desafios:
1) discernir a
nova religiosidade;
2) respeitar a
diversidade na Igreja;
3) falar uma
nova linguagem;
4) manter viva
a esperança dos pobres.
II) AS
RESPOSTAS DOS ATOS DOS APÓSTOLOS
Nesta II
parte, procuraremos mostrar a atualidade dos Atos quanto a:
1) o
fundamento da missão;
2) um critério
para distinguir.
3) uma
condição para ser fiel: a perseverança;
4) o
discernimento comunitário da vontade de Deus;
5) falar a
língua de todos;
6) atenção aos
sinais dos tempos;
7) construir a
Igreja em cada cidade, em cada lugar;
8) uma miríade
de protagonistas;
9) edificar a
comunhão eclesial;
10) comunhão
fraterna, semente de uma nova sociedade.
Conclusão
Uma rápida
olhada sobre o passado
Uma das formas
mais importante de entender plenamente um texto antigo é procurar reconstruir
os efeitos que ele produziu na história. Uma reconstrução do que os Atos
produziram seria muito interessante. Nós não temos espaço aqui para tanto. Mas
é bom lembrar que os Atos já tiveram muita influência na vida da Igreja,
praticamente em todas as épocas. Não é este um sinal de que os Atos podem
produzir mais alguma novidade?
O livro dos
Atos dos Apóstolos, desde muito cedo, influenciou o calendário litúrgico,
fixando festas do Senhor como Natal, Ascensão e Pentecostes, festas de Nossa
Senhora como a Anunciação, festas de Santos como João Batista, Estêvão, Paulo
(conversão e martírio), Matias e Barnabé...
Sobretudo o
livro dos Atos foi, muitas vezes, o inspirador de movimentos de reforma ou
renovação na Igreja. Inspirou as primeiras experiências comunitárias monásticas
(no início, os monges viviam sozinhos). Inspirou novas experiências de vida
comunitária fora do monacato, como a dos cônegos regulares (séc. XI). Inspirou
os movimentos evangélicos do séculos XIII e as propostas de reforma da Igreja
no século XVI. Guiou a revolução inglesa no século XVII (tão importante na
formação da modernidade!) e, no século passado, inspirou o "socialismo
religioso". No século XX, inspirou um amplo movimento comunitário, que
procurou renovar interiormente a Igreja e aproximá-la mais da Igreja das
origens, do evangelho.
PRIMEIRA
PARTE:
OS DESAFIOS
ATUAIS DO CRISTIANISMO
É impossível
descrever em poucas linhas os desafios - na realidade, grandes, imensos - que o
cristianismo enfrenta no limiar do III milênio. Podemos apenas acenar a alguns
dos mais relevantes.
Ajudar-nos-á a
Carta que o Santo Padre João Paulo II, concluindo a magnífica celebração do
Jubileu dos 2000 anos do nascimento de Jesus, dirigiu a todos nós com o título:
"Iniciando o novo milênio" . Sua mensagem fundamental é tirada
daquela frase de Jesus a Pedro: "Avança para águas mais profundas" (em
latim: duc in altum, vai para o alto-mar!) (Lc 5,4). A partir daí o Papa traça
um programa de ação, depois de tê-lo fundamentado na pessoa de Jesus e na
oração, porque considera que o Jubileu é apenas um início daquilo para que
Jesus enviou seus discípulos: a pesca em "alto-mar", o apostolado no
mundo, o serviço do Evangelho e do reino de Deus.
Para o Papa o
Jubileu foi uma oportunidade para "a Igreja... interrogar-se sobre a sua
renovação para assumir com novo impulso a sua missão evangelizadora"(NMI,
2). E logo depois acrescenta: "Há muito trabalho à nossa espera; por isso,
devemos pôr mãos a uma eficaz programação pastoral pós-jubilar" (NMI 15).
"Espera-nos uma entusiasmante obra de relançamento pastoral; uma obra que
nos toca a todos" (NMI 29). Pede um "confiante otimismo", mas
adverte: "Certamente não nos move a esperança ingênua de que possa haver
uma fórmula mágica para os grandes desafios do nosso tempo" (NMI 29).
Portanto,
considerando esta última exortação do Papa e outros documentos da Igreja (o
Papa menciona mais vezes o Concílio Vaticano II e os recentes Sínodos
continentais), vamos brevemente lembrar alguns desses "grandes
desafios" e, um pouco mais detidamente, vamos procurar as respostas que o
livro dos Atos nos sugere. Veremos como muitas destas sugestões estão presentes
também na Carta do Papa João Paulo II.
1º - Um
primeiro desafio: discernir a nova religiosidade
Um fato novo
está atingindo um pouco o mundo todo, mas em particular o Brasil e os Países
que se encontram numa situação semelhante. Há trinta anos, mesmo na Igreja
Católica, não eram poucos os pensadores que previam um enfraquecimento ou um
esfriamento da religião, talvez até uma ampla difusão do ateísmo. (O que não
deixou de acontecer, em parte, em alguns Países europeus). Mas, em geral,
aconteceu o contrário! As religiões se reforçaram e atraíram as massas,
passaram a oferecer uma resposta à sede dos indivíduos de certeza e
solidariedade, chegando até a reencontrar um importante peso social e político.
A nova onda de
religiosidade, porém, está longe de ser uma busca de cristianismo autêntico e,
principalmente, de adesão à Igreja. A nova religiosidade, muitas vezes, nem
parece muito preocupada com Deus, e sim com a satisfação, o entusiasmo ou a paz
interior de cada pessoa. A nova religiosidade busca a festa, a emoção, a
alegria de viver, e descoberta de algo diferente e melhor que a vida dura da
sociedade competitiva e cheia de riscos em que vivemos. A nova religiosidade
procura mais o próprio Eu do que Deus. As pessoas não aceitam uma doutrina, uma
disciplina, uma igreja. Escolhem atos, expressões, eventos, assembléias onde se
sentem à vontade, que respondem ao seu sentimento ou ao seu gosto. O Papa fala
que "estamos entrando num milênio que se anuncia caracterizado por uma
profunda amálgama de culturas e religiões mesmo nos países de antiga
cristianização. Em muitas regiões, os cristãos são - ou vão-se tornando - um
" pequenino rebanho " (Lc 12,32)" (NMI 36). E conclui que isto
coloca os cristãos "perante o desafio de testemunharem com mais força, muitas
vezes em condições de solidão e hostilidade, os aspectos específicos que os
identificam".
No caso do
Brasil, os católicos não são um "pequenino rebanho", nem sofrem
perseguições como os cristãos em certos Países muçulmanos ou comunistas. Mas na
periferia de nossas grandes cidades, às vezes até em comunidades do interior, o
número das pessoas que freqüenta templos, centros ou terreiros de outras
religiões é igual ou até superior ao número dos católicos que vão regularmente
à Missa ou ao culto todo domingo. E grande é no Brasil a "amálgama
(mistura) de religiões.
Então o
desafio hoje não é aproximar as pessoas da religião, mas levá-las a seguir o
Evangelho e a praticar a autêntica religião cristã. É distinguir com clareza o
que faz a identidade do cristão e do católico.
2º - Um
segundo desafio: respeitar a diversidade na Igreja
Um outro
desafio pode passar despercebido aos católicos, mas não deixa de ser muito
sério e de requerer até maior atenção. A mudança na religiosidade em geral
penetra também na Igreja Católica, mesmo se as aparências externas podem
continuar as mesmas. Na realidade, mesmo entre os católicos a concepção da
religião está mudando ou mudou. Por isso surgem divergências e conflitos a
respeito das novidades, que alguns acolhem com entusiasmo (até desmedido, às
vezes) e outros rechaçam com rigor e talvez sem compreensão.
O Papa, na
recente Carta "Iniciando o novo milênio", não trata disso
diretamente.Mas indiretamente insiste no apelo à comunhão, ao diálogo, ao
entendimento entre os católicos, no seio de nossas comunidades. Não faria isso,
se não fosse necessário, ou pelo menos oportuno!
O que muitos
observadores reparam é que o catolicismo mudou muito nos últimos quarenta nos,
desde o tempo do Papa Pio XII (U1958). Até então, a Igreja era respeitada como
"instituição", quer dizer como uma sociedade com sua tradição e suas
regras, uma autoridade que ninguém discutia, a não ser que quisesse se opor ou
se colocar fora da Igreja. Dizem que o próprio Papa Pio XII perdeu o sono,
angustiado, quando se tratou de mudar os horários da Semana Santa (1955) e da
Missa dominical (1957). Aliás, deixava-se uma tradição secular, medieval e
moderna, para voltar à tradição mais antiga! Mexer nas "tradições"
parecia um sacrilégio!
Nos anos '60,
porém, espalhou-se na Igreja uma nova sensibilidade, que já tinha emergido
antes em alguns lugares, inclusive a partir do desejo de imitar a Igreja
antiga, a dos primeiros cristãos. A Igreja era vista agora como
"comunidade", como lugar em que as pessoas se encontram e se amam,
partilham a fé e a Eucaristia. O critério da vida cristã não é mais a tradição
ou a disciplina, mas a intensidade da vida comunitária, fraterna. O Concílio
Vaticano II, mesmo não assumindo plenamente esta concepção, favoreceu de fato a
multiplicação das pequenas comunidades ou comunidades de base. Também a
paróquia foi pensada como "comunidade missionária". No Brasil, houve
uma imensa repercussão dessa visão e se multiplicaram as CEBs, especialmente no
mundo rural e na periferia de grandes cidades.
Mas nos anos
'90 tornou-se sempre mais evidente que uma outra mentalidade penetrou
profundamente na vida cristã, mesmo se alguns ainda não se dão conta. Trata-se
do individualismo, conseqüência do esgarçamento da vida comunitária nas cidades
e da nova mentalidade criada na sociedade de consumo, com a ajuda da televisão
e da comunicação de massa. Também entre os católicos se espalha aquela
tendência ao subjetivismo, pela qual a religião é praticada segundo o gosto
pessoal, escolhendo as experiências e expressões religiosas que agradam e
rejeitando outras exigências da doutrina ou da disciplina da Igreja.
Mas nem tudo
vai no sentido de desgastar a tradição. As pessoas reagem às tendências da
época e continuam procurando formas novas de associar-se e partilhar suas
experiências. O catolicismo dos últimos quarenta anos mostrou assim uma
vitalidade que poucos imaginavam. Produziu muitas novidades que poucos
esperavam. O resultado, porém, é que hoje é muito variado. Encontramos - não
apenas na mesma diocese, mas até na mesma paróquia ou comunidade - católicos
apegados às tradições religiosas populares, veneráveis pela idade e pela
autenticidade; encontramos os que fizeram experiências comunitárias, de
formação bíblica e de pastoral social, bastante preocupados porque vêem minguar
o número dos que compreendem e apóiam suas iniciativas; encontramos gente
entusiasmada com os novos movimentos, onde acharam um ambiente
"quente" e acolhedor, mas que não assumem grandes compromissos e às
vezes nem aparecem na Missa dominical; encontramos pessoas meio desorientadas
no meio de tudo isso e outras que se esforçam para manter viva a comunicação, o
diálogo, o entendimento o e intercâmbio entre os vários grupos.
O desafio,
então, como diz o Papa, é o de promover a "comunhão", o diálogo, a
união fraterna na Igreja. "O outro vasto campo, em que se torna necessário
um decidido empenho programático a nível da Igreja universal e das Igrejas
particulares, é o da comunhão (koinonia), que encarna e manifesta a própria
essência do mistério da Igreja. A comunhão é o fruto e a expressão daquele amor
que, brotando do coração do Pai eterno, se derrama em nós através do Espírito
que Jesus nos dá, para fazer de todos nós " um só coração e uma só alma
" (Act 4,32). Ao realizar esta comunhão de amor, a Igreja manifesta-se
como " sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da
unidade de todo o gênero humano " (LG 1)" (NMI 41).
O 3º
desafio: falar uma nova linguagem
O terceiro
desafio não é menos urgente, mas é mais difícil imaginá-lo ou descrevê-lo,
porque avançamos muito pouco em nossa busca de uma resposta. Como descrever
concretamente algo que ainda não experimentamos?
Mas a palavra
do Papa pode nos ajudar. O Papa tem consciência de que a Igreja - até hoje
demasiadamente presa à sua tradição ocidental ou simplesmente latina - está
diante do desafio de comunicar melhor a mensagem do Evangelho em novas
linguagens, em diálogo com as muitas e diversas culturas não européias e com a
nova cultura mundial, tecnológica e globalizada. De fato, o catolicismo está
pouco presente na Ásia (menos de 3% da população) ou na África (cerca de 15% da
população) ou, no Brasil, até recentemente pouco valorizou (quando não
desprezou ou destruiu) as culturas indígenas e negras. Mas ouçamos o Papa: "O
cristianismo do terceiro milênio deverá responder cada vez melhor a esta
exigência de inculturação. Permanecendo o que é, na fidelidade total ao anúncio
evangélico e à tradição eclesial, o cristianismo assumirá também o rosto das
diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar. Ao longo
do ano jubilar, pudemos saborear de modo especial a beleza deste rosto
pluriforme da Igreja. Talvez seja só um início, um ícone apenas esboçado do
futuro que o Espírito de Deus nos prepara"(NMI 40).
É claro que o
Papa não pensa em mudar nada do conteúdo essencial da proposta evangélica.
Quando fala de um novo programa missionário, evangelizador e pastoral, logo
ressalta que "não se trata de inventar um "programa novo". O
programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição
viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de
conhecer, amar, imitar, para n'Ele viver a vida trinitária e com Ele
transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste. É um programa
que não muda com a variação dos tempos e das culturas, embora se tenha em conta
o tempo e a cultura para um diálogo verdadeiro e uma comunicação eficaz. Este
programa de sempre é o nosso programa para o terceiro milênio" (NMI 29).
Então o
desafio é claro: na fidelidade a Cristo, à sua Palavra viva, devemos comunicar
a mensagem evangélica como Jesus fez, a partir da experiência de vida e da
visão do mundo do povo a quem dirigimos a mensagem, não como uma pedra caída do
céu, mas como a interpretação do desígnio de Deus já de algum modo inscrito em
nossa história.
Um 4º
desafio: manter viva a esperança dos pobres
Às vezes
esquecemos que Jesus veio "evangelizar os pobres", não apenas
"evangelizar" (cf. Mt 11,5; Lc 4,18). Jesus veio trazer uma boa
notícia e uma esperança para os pobres. Deus se lembrou deles e o sinal de que
seu Reino está se aproximando está na obra de Jesus e daqueles que O seguem.
Como Jesus respondeu aos enviados de João Batista: "Ide contar a João o
que estais ouvindo e vendo:cegos recuperam a vista, para líticos andam,
leprosos são curados, surdos ouvem, mortos ressuscitam e pobres recebem a Boa
Nova!" (Mt 11,4-5).
O mundo de
hoje ainda tem muitos pobres. Metade da população mundial só usufrui de 6% da
renda total e vive com menos de 2 dólares USA por dia. Uma parte deles, os 20%
mais pobres do mundo, têm 1% da renda e menos de 1 dólar por dia. O Brasil não
é um dos Países pobres. No conjunto, é um País de desenvolvimento médio, entre
os primeiros do seu grupo. Sua renda por pessoa é dez vezes maior que a de
muitos Países realmente pobres da África e da Ásia. Mas, no Brasil, a
desigualdade é das maiores do mundo. A renda média dos 20% mais ricos (cerca de
21.134 dólares em 1999) é 25,5 vezes superior à renda média dos 20% mais pobres
(828 dólares). Ou, em outros termos, o 1º grupo desfruta de 63,8% da renda
nacional; o 2º, dispõe de 2,5% do total. Em conseqüência, numa população de
quase 170 milhões de habitantes, os pobres são 35% ou quase 60 milhões! (Pobre
é considerada a pessoa que conta com uma renda inferior a meio salário mínimo).
O Papa
comenta: "No nosso tempo, de fato, são muitas as necessidades que
interpelam a sensibilidade cristã. O nosso mundo começa o novo milênio,
carregado com as contradições dum crescimento econômico, cultural e tecnológico
que oferece a poucos afortunados grandes possibilidades e deixa milhões e
milhões de pessoas não só à margem do progresso, mas a braços com condições de
vida muito inferiores ao mínimo que é devido à dignidade humana. Como é
possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, quem esteja
condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidados médicos mais
elementares, quem não tenha uma casa onde abrigar-se?" (NMI 50).
E aponta o
desafio para os cristãos: "Por isso, devemos procurar que os pobres se
sintam, em cada comunidade cristã, como "em sua casa". Não seria,
este estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do Reino? Sem esta
forma de evangelização, realizada através da caridade e do testemunho da pobreza
cristã, o anúncio do Evangelho - e este anúncio é a primeira caridade - corre o
risco de não ser compreendido ou de afogar-se naquele mar de palavras que a
atual sociedade da comunicação diariamente nos apresenta. A caridade das obras
garante uma força inequívoca à caridade das palavras".
SEGUNDA
PARTE:
AS
RESPOSTAS DOS ATOS DOS APÓSTOLOS
Seria muita
presunção querer antecipar todas as respostas que os Atos poderão oferecer-nos
como luz para a missão da Igreja hoje ao longo de um estudo cuidado e
aprofundado, que deverá se estender por dois anos.
Mas é possível
sugerir que tipo de respostas os Atos podem nos apresentar. O estudo posterior
nos ajudará a compreendê-las melhor.
1º - O
fundamento da missão
O Papa diz com
clareza que não adianta "fazer por fazer" e, antes de propor linhas
de ação pastoral, procura "partilhar algum tópico de meditação sobre o
mistério de Cristo, fundamento absoluto de toda a nossa ação pastoral"
(NMI 15).
Os Atos dos
Apóstolos também nos apresentam a ação missionária da Igreja como continuação
fiel da ação de Jesus. Não apenas os discípulos fazem as mesmas coisas que
Jesus faz, mas o mesmo Espírito de Deus que conduzia Jesus guia agora a Igreja
. O Espírito remete continuamente à Palavra, ou seja, à vida e às palavras de
Jesus testemunhadas pelos discípulos. O Espírito Santo é quem nos faz
compreender e interpretar retamente a mensagem do Evangelho.
Como diz muito
bem o Papa: "A contemplação do rosto de Cristo não pode inspirar-se senão
àquilo que se diz d'Ele na Sagrada Escritura, que está, do princípio ao fim,
permeada pelo seu mistério. Este aparece obscuramente esboçado no Antigo
Testamento e revelado plenamente no Novo, de tal maneira que S. Jerônimo afirma
sem hesitar: "A ignorância das Escrituras é ignorância do próprio Cristo".
Permanecendo ancorados na Sagrada Escritura, abrimo-nos à ação do Espírito, que
está na origem dos seus livros, e simultaneamente ao testemunho dos Apóstolos,
que fizeram a experiência viva de Cristo, o Verbo da vida: viram-No com os seus
olhos, escutaram-No com os seus ouvidos, tocaram-No com as suas mãos (cf. 1 Jo
1,1)" (NMI 17).
2º - Um
critério para distinguir
Com base neste
fundamento, poderemos construir a comunidade dos discípulos de Jesus, a Igreja
de Deus. Os Atos dos Apóstolos não oferecem um "modelo" de Igreja
(como se poderia construir o modelo de um automóvel ou de uma casa), mas
oferecem o critério - o Evangelho, a Palavra, compreendida com a ajuda do
Espírito! - para distinguir o que é bom e autêntico e o que não o é.
Muitas vezes
os Atos mostram exemplos de religiosidade, de pessoas que se interessam - mais
ou menos sinceramente - pela mensagem de Jesus. Mas não todas as suas atitudes
são aprovadas pelo Espírito e pelos apóstolos, porque não são conformes à
vontade de Deus (cf. por ex. At 8,18-24; At 14, 13-18; na própria vida de
Paulo, os Atos distinguem o zelo desordenado pela Lei e a fé ardorosa em
Cristo). A verdadeira fé e a religiosidade ainda ambígua e mal orientada são
distintas com clareza. Os Atos respondem a um dos interrogativos de hoje: O que
é ser cristão? Qual é a religião verdadeira, a que Deus quer e abençoa?
3º - A
condição para ser fiel: a perseverança
Desde o
início, os Atos explicitam a condição para que a comunidade eclesial, que
recebeu o dom do Espírito, possa se manter fiel à mensagem e à obra de Jesus. O
texto mais explícito (e justamente famoso) é o "retrato da
comunidade" de At 2, 42-47. Na realidade, não é apenas um retrato. Melhor
seria dizer que estamos diante de uma descrição, em linhas essenciais, do
"genoma" (ou do DNA) da comunidade. Onde há uma célula deste tipo, lá
pode se desenvolver uma verdadeira comunidade de discípulos de Jesus. A
condição é formulada em quatro tópicos: perseverança em 1) o ensinamento dos
apóstolos (ou seja, na memória da Palavra); 2) a eucaristia ou partilha do pão
(síntese do exemplo de doação que Cristo deu e lugar da sua presença permanente
na comunidade); 3) a comunhão fraterna, de bens espirituais e materiais (a
própria Eucaristia, que une no corpo de Cristo, inspira que também o pão de
cada dia seja repartido igualmente entre os irmãos); 4) a oração, que é
sobretudo oração de louvor, realizada comunitária e publicamente no Templo.
Veremos que esta comunidade não pode deixar de exercer a diakonia, o serviço
aos pobres, começando pelos órfãos e as viúvas da comunidade, inspirando um
modelo alternativo à sociedade desigual e egoísta que a circunda.
Também é
importante frisar que a comunidade será autêntica somente se perseverar. Numa
sociedade pluralista e cheia de outros caminhos, religiosos e não, há um perigo
real (denunciado também na explicação da parábola do semeador - cf. Mc 4,
13-20) que um cristão ou uma comunidade deixe "que a Palavra seja
arrancada por Satanás" ou "desista logo por causa da perseguição ou
tribulação" ou permita que a Palavra seja sufocada, "quando surgem as
preocupações mundanas, a ilusão da riqueza e todos os outros desejos".
4º - O
discernimento comunitário da vontade de Deus
Nas situações
concretas, nem sempre é fácil discernir a vontade de Deus, mesmo numa
comunidade fiel. No centro do livro dos Atos (cap. 15) emerge dramaticamente o
maior de todos os questionamentos do cristianismo primitivo, o que decidirá o
destino da Igreja. Depois que a comunidade de Antioquia decidiu (julgando-se
movida pelo Espírito Santo - cf. At 13,2) acolher pagãos convertidos e
batizá-los, sem exigir deles a circuncisão e a observância de toda a Lei de
Moisés, outros cristãos, vindos de Jerusalém, questionaram a iniciativa,
afirmando "Se não fordes circuncidados, não podereis ser salvos" (At
15,1b).
Como discernir
a verdade? Como reconhecer com certeza a vontade de Deus? A solução está na
busca de um discernimento espiritual, numa reflexão iluminada pelo Espírito,
num diálogo sereno sobre fatos e razões. O cap. 15 dos Atos relata sobretudo a
palavra dos líderes: Pedro, Paulo e Barnabé, Tiago, mas deixa entender que
outros falaram, simples discípulos ou anciãos.
Faz parte da
tradição da Igreja ouvir a todos, pois o Espírito pode falar pela boca dos
simples e dos pequenos. Como lembra o Papa: "Devem-se valorizar cada vez
mais os organismos de participação previstos no direito canônico, tais como os
Conselhos Presbiterais e Pastorais. (...) Com tal finalidade, é preciso assumir
aquela antiga sabedoria que, sem prejudicar em nada o papel categorizado dos
Pastores, procurava incentivá-los à mais ampla escuta de todo o povo de Deus. É
significativo o que S. Bento lembra ao abade do mosteiro, ao convidá-lo a
consultar também os mais novos: "É freqüente o Senhor inspirar a um mais
jovem um parecer melhor". E S. Paulino de Nola exorta: "Dependemos
dos lábios de todos os fiéis, porque, em cada fiel, sopra o Espírito de
Deus" (NMI 45).
Preciosa
orientação, dos Atos e do Papa, para as nossas comunidades hoje muitas vezes
divididas por dúvidas ou divergências e que devem procurar no diálogo e no
respeito mútuo a comunhão, o discernimento - afinal! - da vontade do próprio
Deus, acima de opiniões e ambições pessoais e mesmo do zelo sincero, mas
excessivo ou menos esclarecido.
E ainda talvez
mais precioso o princípio que resolve o debate: "Deus não faz
discriminação entre as pessoas" (cf. At 10,34; 15,9). Nossas comunidades
estão sempre lembradas de que o nosso Deus "não faz discriminação"?
5º - Falar
a língua de todos
Reconhecer que
Deus não faz discriminação significa admitir que a mensagem dele é dirigida a
todos. Para o livro dos Atos, isto é claro desde o início, desde Pentecostes. A
lista de povos aí citada (cf. At 2,9-11), um pouco estranha para nós, quer
dizer concretamente que a mensagem de Cristo é destinada a todos os povos e que
cada um deve escutá-la em sua própria língua. O Evangelho deve ser proposto a
todas as culturas e a tidas as etnias.
Esta
preocupação de "inculturação" aparece também nos discursos
"querigmáticos", aqueles em que os apóstolos anunciam o Cristo. Eles
não são a repetição de uma mesma fórmula. Eles são a tentativa de um diálogo,
que leva em conta a cultura e a história do ouvinte. Cf. o discurso aos judeus,
baseado sobre o Antigo Testamento (At 13, 16-41); o discurso aos camponeses da
Licaônia, baseado sobre sol e chuva (At 14, 15-18); o discurso aos intelectuais
de Atenas, com citações de poetas e filósofos (At 17,19-31).
Maior ainda
aparece a adaptação às diversas culturas e situações humanas quando o discurso
é o da didaqué, ou seja, da "doutrina" que explica a fé e a moral
cristãs. Há exemplos deles nos Atos e, sobretudo, nas Cartas do Novo
Testamento.
6º -
Atenção aos sinais dos tempos
Os Atos nos
mostram uma Igreja voltada não somente para a diversificação geográfica e
cultural, que busca todos os povos (ou, pelo menos, muitos daqueles então
conhecidos). A Igreja está atenta também aos "sinais dos tempos". A
expressão vem de Jesus e chama a atenção para os sinais daquilo que Deus está
fazendo ou está por fazer na história. Nos Atos, o Espírito Santo muitas vezes
revela o que exige ou o que acontecerá através de profetas. A profecia é um dos
dons do Espírito. mas muito mais importante do que uma ou outra indicação
particular é a vontade do Espírito de que a Igreja avance. O Papa também
enfatiza isso na NMI: "Tudo o o que aconteceu sob os nossos olhos merece
ser ponderado e de certo modo decifrado, para ouvir aquilo que [ao longo do ano
do Jubileu], o Espírito disse à Igreja" e cita como exemplo as cartas do
profeta às igrejas da Ásia (cf. Ap 2,7.11.17 etc.).
Paulo
interpretou bem esse impulso do Espírito quando escreveu aos Filipenses:
"Irmãos, uma coisa eu faço: esquecendo o que fica para trás, lanço-me para
o que está à frente. Lanço-me em direção à meta" (Fl 3,13-14a). Também o
Papa João Paulo II cita esse texto na conclusão (nº 59) da sua Exortação para o
início do Novo Milênio. E, como já lembramos, dá a ela como eixo e como lema
outra palavra semelhante de Jesus: "Avança para o largo, para o alto-mar!"
(Lc 5,4). Os cristãos consideram que pouco ainda foi "pescado", que a
colheita ainda é pequena. O cristianismo ainda não revelou em plenitude tudo o
que pode dar. Esse é o nosso desafio: mostrar sempre mais à humanidade a
riqueza do mistério de Cristo!
7º - Construir
a Igreja em cada cidade, em cada lugar
Os discípulos
que "perseveram" na comunhão com a fé dos apóstolos e na celebração
da Eucaristia, repartindo o pão com quem tem fome, formam - em cada lugar em
que se encontram - a Igreja de Deus. Não se trata de um pedaço da Igreja, mas
da Igreja inteira, porque Cristo está presente, mesmo se o grupo for muito
pequeno (cf. Mt 18, 20: "Onde dois ou três estiverem reunidos...") .
Não se trata também de uma mera repetição da comunidade de Jerusalém, porque
cada comunidade tem sua fisionomia própria; é uma realidade viva, edificada
pela participação dos fiéis daquele lugar. Mas é ao mesmo tempo a única Igreja
de Deus que "está" presente e se manifesta em Antioquia, Damasco,
Tarso, Lista e Derbe, Tessalônica ou Filipos, Atenas ou Corinto, Roma...
O Papa diz
algo semelhante quando lembra a necessidade de traduzir o único programa
essencial - trazer presente o mistério de Cristo - em cada realidade local.
"É necessário traduzi-lo em orientações pastorais ajustadas às condições
de cada comunidade. O Jubileu proporcionou-nos a oportunidade extraordinária de
nos empenharmos, durante alguns anos, num caminho comum da Igreja inteira, um
caminho de catequese articulada sobre o tema trinitário e acompanhada por
específicos compromissos pastorais... Agora, já não é uma meta imediata que se
apresenta diante de nós, mas o horizonte mais vasto e exigente da pastoral
ordinária. No respeito das coordenadas universais e irrenunciáveis, é
necessário fazer com que o único programa do Evangelho continue a penetrar,
como sempre aconteceu, na história de cada realidade eclesial. É nas Igrejas
locais que se podem estabelecer as linhas programáticas concretas - objetivos e
métodos de trabalho, formação e valorização dos agentes, busca dos meios
necessários - que permitam levar o anúncio de Cristo às pessoas, plasmar as
comunidades, permear em profundidade a sociedade e a cultura através do
testemunho dos valores evangélicos" (NMI 29).
8º - O que
devo fazer? Uma miríade de protagonistas
No livro dos
Atos, cada pessoa ou grupo que acolheu a vocação cristã é chamado a perguntar:
"E agora, o que devo (devemos) fazer?" (cf. At 2,37; 9,6; 16,30;
22,10). De fato, todos os discípulos são chamados a evangelizar, a testemunhar.
Todos são chamados a ser missionários. "Quem verdadeiramente encontrou
Cristo, não pode guardá-Lo para si; tem de O anunciar. É preciso um novo ímpeto
apostólico, vivido como compromisso diário das comunidades e grupos cristãos.
Que isso se faça, porém, no devido respeito pelo caminho próprio de cada pessoa
e com atenção pelas diferentes culturas em que deve ser semeada a mensagem
cristã, para que os valores específicos de cada povo não sejam renegados, mas
purificados e levados à sua plenitude", conclui o Papa (NMI 40).
Da evangelização
e da edificação da Igreja local todos os discípulos são chamados a participar,
cada um segundo seu carisma, que posto a serviço da comunidade pode ser
reconhecido como um "ministério" estável, permanente". (Sobre a
instituição de ministros segundo as necessidades locais, cf. At 6, 1-6; 14,23;
20,28; etc.). Não há ainda, na Igreja do tempo dos Atos, um único modelo de
ministério para todos. Mas há uma indicação de como proceder no discernimento
do que é necessário e na escolha das pessoas. Assim os Atos apresentam uma
grande variedade de personagens protagonistas da evangelização: além dos Doze
(apóstolos), são citados os Sete líderes dos helenistas, os presbíteros de
Jerusalém e de outras comunidades, os "apóstolos" Paulo e Barnabé, os
colaboradores de Paulo, como Silas, Timóteo e Tito... Mas também nos dão o nome
e, às vezes, alguma notícia de simples cristãos, homens e mulheres, que
contribuem para a difusão da Palavra ou colocam sua casa e seus recursos à
disposição da comunidade; Maria mãe de Marcos, Lídia, Dionísio e Dámaris,
Áquila e Priscila, Sópatros, Aristarco e Segundo... Entre estes, destacam-se
pessoas ou casais que colocam à disposição a própria casa para as reuniões
comunitárias. (At 2,42-47 lembrava que os primeiros cristãos rezavam juntos no
Templo, mas depois "partiam o pão pelas casas e tomavam refeição com
alegria e simplicidade"). Em outros casos, Atos fala da conversão de
fulano e "de toda a sua casa" (isto é, familiares e, às vezes,
amigos) (cf. At 10,24; 16,33).
Podemos
lembrar aqui a grave responsabilidade das famílias cristãs hoje na educação dos
filhos, que crescem num ambiente (escola, TV, sociedade...) com poucas ou
nenhuma referência cristã (cf. também NMI 43).
9º -
Edificar a comunhão eclesial
A variedade
das vocações e dos ministérios, assim como as diferenças de origem (os cristãos
aceitam a todos: judeus e gregos, livres e escravos, homens e mulheres...),
pode trazer alguma desordem na comunidade eclesial. Os Atos não insistem sobre
isso. Poucas vezes acenam ao perigo de divisões, inclusive mais no futuro do
que no presente (cf. o discurso de Paulo aos anciãos de Éfeso: "Sei que,
depois que eu for embora, surgirão entre vós lobos ferozes, homens com
doutrinas perversas que arrastarão discípulos atrás de si..." - At 20,29-30).
De fato, o próprio Paulo, na I Carta aos Coríntios, lamenta profundamente as
divisões naquela comunidade (cf. 1Cor 1, 10-17).
Por isso, os
Atos mostram o caminho da comunhão, ",especialmente daquele "espírito
de comunhão" que deve fundamentar as práticas da solidariedade e
fraternidade. O Papa insiste que "espiritualidade da comunhão é saber
"criar espaço" para o irmão, levando "os fardos uns dos
outros" (Gl 6,2) e rejeitando as tentações egoístas que sempre nos
insidiam e geram competição, carreirismo, suspeitas, ciúmes. Não haja ilusões!
Sem esta caminhada espiritual, de pouco servirão os instrumentos exteriores da
comunhão. Revelar-se-iam mais como estruturas sem alma, máscaras de comunhão,
do que como vias para a sua expressão e crescimento" (NMI 43).
Com esta
advertência, o Papa prossegue: "Os espaços da comunhão hão-de ser
aproveitados e promovidos dia-a-dia, a todos os níveis, no tecido da vida de
cada Igreja. Nesta, a comunhão deve resplandecer nas relações entre Bispos,
presbíteros e diáconos, entre Pastores e o conjunto do povo de Deus, entre
clero e religiosos, entre associações e movimentos eclesiais" (NMI 45).
10º -
Comunhão fraterna, semente de uma nova sociedade
Uma comunidade
eclesial que realmente viva a comunhão fraterna não deixa de constituir um
exemplo que chama atenção, numa sociedade competitiva, desigual, onde a força e
o egoísmo parecem ter a última palavra.
As primeiras
comunidades cristãs, guiadas pelos Apóstolos, parecem ter chamado atenção pelos
"sinais e prodígios", que eles realizavam à semelhança de Jesus (cf.
At 2,22.43; 4,16.22;.30; 5,12; etc.). Mas a função desses sinais e prodígios
não termina numa ou outra cura isolada. Eles querem mostrar o poder de Deus
contra o mal, o poder de devolver à humanidade sua integridade e sua santidade.
Querem chamar para a conversão e a vida de comunhão. Eles não teriam sentido
(ou não teriam o sentido que Deus quer) se não gerassem comunhão. E a comunhão
verdadeira, radical, de homens e mulheres que põem a serviço uns dos outros seus
bens espirituais e materiais, que "não consideravam suas as coisas que
possuíam", é o grande testemunho do reino de Deus, até a sua antecipação
ou começo.
Esta comunhão
fraterna, na sociedade pagã, aparece como uma alternativa, uma nova possível
forma de sociedade, que não abandona órfãos e viúvas, que não explora a
escravatura e o trabalho, que não atribui todo o poder a poucos, os quais
muitas vezes tudo esbanjam numa vida depravada ou alienada enquanto outros
morrem de fome à porta da sua casa (cf. Lc 16, 19-31).
Somente no IV
século os cristãos deram uma amostra - às vezes pequena, mas significativa - de
como podiam transformar a sociedade pagã ou, ao menos, aliviar o sofrimento de
muitos. Mas a "comunhão fraterna" dos Atos permanece até hoje como
uma semente que quer brotar e crescer, estabelecendo no mundo a solidariedade e
eliminando a pobreza, pois "ninguém entre eles passava necessidade"
(At . 4,34; cf. Dt 15,4).
Conclusão
A riqueza de
sugestões e critérios que os Atos oferecem para a ação pastoral e missionária
hoje bem merece um estudo prolongado, como aquele proposto pelo Projeto
"Ser Igreja no Novo Milênio".
Quanto ao
espírito que deve nos mover nessa ação é aquele mesmo dom que só o Espírito
Santo nos pode dar: o amor. "A tal respeito, as palavras do Senhor são tão
precisas que não é possível reduzir o seu alcance" - diz o Papa João Paulo
II. "A Igreja terá necessidade de muitas coisas para a sua caminhada
histórica, também no novo século; mas, se faltar a caridade (agape), tudo será
inútil. O apóstolo Paulo recorda-o no hino à caridade: Ainda que falássemos as
línguas dos homens e dos anjos e tivéssemos uma fé capaz "de transportar
montanhas", mas faltasse a caridade, de "nada" nos serviria (cf.
1 Cor 13,2). A caridade é verdadeiramente o "coração" da Igreja, como
bem intuiu S. Teresa de Lisieux que eu quis proclamar Doutora da Igreja
precisamente como perita da ciência do amor: "Compreendi que a Igreja tem
um coração, um coração ardente de amor; compreendi que só o amor fazia atuar os
membros da Igreja [...]; compreendi que o amor encerra em si todas as vocações,
que o amor é tudo"" (NMI 42).
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