História do Novo Testamento
A) Primeiro, a comunidade
Em torno de Jesus tinha-se reunido a comunidade dos que tinham acreditado nele. Depois da ressurreição, depois que tinham sido iluminados pelo Espírito Santo, os discípulos começaram a viver e a propagar a mensagem cristã. Eles aceitavam as Escrituras Sagradas que tinham recebido da tradição judaica. Já agora, porém, iluminados pelo Espírito Santo e assistidos continuamente pelo Cristo, liam as Escrituras sob uma nova luz. Temos uma imagem clara dessa situação nova na passagem de Lucas (24,13-32), que nos conta a aparição de Jesus aos dois discípulos que iam a caminho de Emaús. Iam, naquele domingo da ressurreição, conversando sobre os últimos acontecimentos. Tinham ficado desorientados com a morte de Jesus e já não sabiam o que pensar. Disse-lhes, então, Jesus (vers. 25):
"Como vocês demoram a entender e a crer em tudo o que os profetas disseram... Começou, então, a explicar todas as passagens das Escrituras Sagradas que falavam dele, começando com os livros de Moisés e os escritos de todos os profetas".
Aliás, o apóstolo Paulo (2Cor 3,14) diz que somente a aceitação de Jesus pela fé nos abre os olhos para uma exata compreensão do Antigo Testamento.
Pois bem. A comunidade cristã, a Igreja, vivia e anunciava a salvação pela fé em Jesus. Sua preocupação era conservar fielmente a mensagem recebida e dar um testemunho sobre os fatos presenciados pelos apóstolos e discípulos. É o que transparece nas palavras de Paulo (1Cor 15,3):
"O que eu recebi e entreguei a vocês é o mais importante: que o Cristo morreu pelos nossos pecados, como está escrito nas Escrituras Sagradas; que ele foi sepultado e que ressuscitou no terceiro dia como está escrito nas Escrituras; e que apareceu a Pedro e depois aos doze apóstolos..."
A primeira preocupação da comunidade não foi escrever um livro. Foi viver e transmitir uma vida. Isso não diminui o valor das Escrituras, da Igreja. Ajuda-nos, porém, a perceber como surgiram e como têm sua compreensão ligada à compreensão da própria vida da Igreja.
B) A Comunidade recebe as Escrituras do Novo Testamento
Inicialmente, pois, a comunidade não tinha o "Antigo e o Novo Testamentos".
Tinha a "Lei" e os "Profetas" e os Escritos. E tinha as palavras de Jesus, sua vida e seus atos. Vamos ver, brevemente, como surgiu o Novo Testamento.
Se abrimos agora uma edição do Novo Testamento, encontramos quatro divisões mais importantes: Evangelho, Atos dos Apóstolos, Epístolas, Apocalipse. É bom sabermos logo que aconteceu também aqui o que já tinha acontecido com o Antigo Testamento: os livros ou as partes não estão colocados na ordem em que foram escritos. A ordem atual levou em conta a importância das partes e também as vantagens práticas de uma sistematização.
São estes os livros, ou as partes, que encontramos em o Novo Testamento:
1º) Evangelhos: de Mateus, de Marcos, de Lucas, de João.
2º) Atos dos Apóstolos.
3º) Epístolas: Em primeiro lugar, as cartas de Paulo aos Romanos, aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, aos Tessalonicenses, a Timóteo, a Tito, a Filêmon. Depois, a carta aos Hebreus, as cartas de Tiago, de Pedro, de João e de Judas.
4º) O Apocalipse de João.
Talvez você não imagine, mas a parte mais antiga do Novo Testamento são as duas cartas de Paulo aos Tessalonicenses, isto é: aos cristãos da comunidade de Tessalônica, uma cidade da Grécia. No capítulo 17(1-10) dos Atos dos Apóstolos, podemos ler a história das primeiras conversões nessa cidade. Paulo esteve em Tessalônica lá pelos meados do ano 5O d.C.(depois de Cristo), quando estava fazendo a sua segunda viagem missionária. Em 51, ele mandou sua primeira carta; a segunda é de 52 ou 53.
Com essas duas cartas, começou a formação do Novo Testamento: as comunidades começaram a colecionar e a trocar entre si os escritos dos apóstolos.
Pelos anos de 54 ou 55, foi escrita a carta para a igreja de Filipos. Entre 57 e 58, surgiram as duas cartas para a comunidade de Corinto e para a dos Gálatas. Possivelmente quando estava preso em Roma, entre 61 e 63, é que Paulo escreveu as cartas para os cristãos de Colossos e de Éfeso. Durante esse mesmo tempo teria escrito a pequena carta a Filêmon, um cristão cujo escravo tinha fugido e fora convertido pelo apóstolo. As duas cartas a Timóteo e a carta mandada para Tito, se foram escritas por Paulo, então devem ter sido enviadas entre 64 e 67.
A seguir, temos as cartas de Pedro, de Tiago e a Epístola aos Hebreus e a de Judas. Foram escritas, o mais tardar, nos decênios finais do primeiro século. Não podemos ter certeza completa sobre seus autores.
O primeiro evangelho a ser escrito foi provavelmente o de Marcos, antes ainda da destruição de Jerusalém, acontecida no ano de 70. Segundo a opinião de vários especialistas, o evangelho de Marcos foi precedido por uma primeira redação do evangelho de Mateus, feita em aramaico.Redação essa que depois foi reelaborada, dando origem à nossa atual edição grega. Não podemos saber exatamente quando isso aconteceu.
Nem podemos saber com certeza quando foi escrito o evangelho de Lucas. Alguns acham que foi escrito antes do ano 70; outros preferem dizer que os evangelhos de Lucas e Mateus (o atual) surgiram lá pelo ano 80.
Esses três evangelhos são bastante semelhantes entre si, apresentando quase os mesmos fatos, quase na mesma ordem. Por isso são chamados de Evangelhos Sinóticos, isso porque poderiam ser colocados lado a lado para serem lidos ao mesmo tempo.
Os Atos dos Apóstolos, que narram os primeiros tempos da Igreja, dando um realce maior às pessoas de Pedro e de Paulo, são como que uma continuação do Evangelho de Lucas. Possivelmente esse livro foi escrito lá pelo ano 80.
Como a parte mais recente do Novo Testamento, temos finalmente o evangelho, as cartas e o Apocalipse de João. Até algum tempo atrás havia escritores que atrasavam até o século segundo o aparecimento desses livros. Atualmente, há um certo acordo que marca o aparecimento desses escritos entre os anos 90 e 100.
Nem seria preciso repetir. Esta apresentação é apenas inicial e sumária. É só através de um estudo mais cuidadoso e demorado de cada livro que poderíamos examinar as perguntas sobre o seu autor e a data de seu aparecimento. De momento, o importante é apenas situar no tempo o aparecimento da Bíblia.
2. A NOSSA BÍBLIA E OS SEUS ORIGINAIS
A Bíblia que nós agora usamos é um livro que adquirimos numa livraria,um livro editado há pouco tempo,por uma dessas modernas editoras. É um livro que lemos em língua portuguesa.Mas nós já sabemos que a Bíblia surgiu há muito tempo atrás,livro escrito em outras línguas.Isso nos leva a fazer algumas perguntas: A Bíblia que temos atualmente corresponde aos originais escritos pelos autores? A nossa tradução em língua portuguesa corresponde aos originais escritos em língua hebraica, aramaica e grega?
1. As línguas originais da Bíblia
Os originais da Bíblia foram escritos em três línguas:o hebraíco,o aramaico e o grego.O hebraico é uma língua muito antiga que já existia antes mesmo de os hebreus, isto é, os judeus aparecerem como um povo identificável. Nessa língua hebraica, foi escrito quase todo o Antigo Testamento. Algumas partes, porém, chegaram até nós apenas em aramaico, uma outra língua adotada mais tarde pelo povo judeu. Nessa língua, temos cinco capítulos do Livro de Daniel, algumas passagens do Livro de Esdras e umas frases do profeta Jeremias. Talvez também essas partes tenham sido escritas originalmente em hebraico. Outras partes chegaram até nós numa tradução em língua grega: o Livro do Eclesiástico (um terço do original hebraico foi descoberto em 1896), os Livros de Baruc, de Tobias, o 1º Livro dos Macabeus, o de Judite e algumas partes de Daniel e Ester. Na língua grega, foram escritos dois livros do Antigo Testamento: o Livro da Sabedoria e o 2º Livro dos Macabeus.
O Novo Testamento foi escrito originalmente em grego, que era a língua mais usada no tempo. Só o Evangelho de Mateus é que foi escrito originalmente em aramaico. Esse original, porém, perdeu-se e só conhecemos a segunda redação feita em grego.
2. As primeiras traduções
A Bíblia foi sempre considerada como um livro muito importante, um livro sagrado que devia ser conhecido por todos. É por isso que surgiram as traduções para os que não podiam compreender a língua original.
A primeira tradução foi feita uns 200 ou 300 anos antes de Cristo. Os judeus que viviam no Egito já não entendiam o hebraico. Foi feita, então, a tradução grega, chamada de "Tradução dos Setenta. Ganhou este nome porque, como contavam, tinha sido feita por setenta sábios. Essa tradução grega do Antigo Testamento era a Bíblia usada pelos primeiros cristãos e, segundo ela, são feitas quase todas as citações que aparecem em o Novo Testamento.
Nos primeiros séculos depois de Cristo foram feitas outras traduções que procuravam uma fidelidade maior ao original hebraico.
Mas não eram só os judeus que viviam no estrangeiro que tinham dificuldade para entender o original hebraico da Bíblia. A partir do cativeiro na Babilônia, mesmo os judeus da Palestina já não falavam o hebraico. Nas Sinagogas (lugar de reunião da comunidade), continuava a ser lido o texto hebraico, mas havia sempre uma pessoa encarregada de fazer uma tradução em aramaico para que todos pudessem compreender a palavra de Deus. Essas traduções foram, aos poucos, sendo postas por escrito e eram mais ou menos fiéis ao texto original. Isso porque, muitas vezes, faziam uma espécie de tradução adaptada às situações do momento.
3. As traduções cristãs
Já nos primeiros séculos da Igreja foram feitas diversas traduções, parciais ou totais, para uso das comunidades cristãs. Até o fim do século segundo, a maioria das comunidades cristãs, mesmo nas regiões de influência romana, falava e entendia o grego popular. Aos poucos, porém, a língua latina, o latim, reconquistou terreno. Começaram assim a surgir as traduções em latim. Parece que a mais antiga é uma tradução chamada de "Ítala porque fora feita na ltália, e recomendada por Santo Agostinho.
Em 382, o Papa Dâmaso pediu que São Jerônimo, um homem muito preparado, fizesse uma revisão da tradução dos Salmos. Terminada essa encomenda, em 392, ele começou uma tradução de todo o Antigo Testamento, diretamente do hebraico. O trabalho ficou pronto em 405. É a tradução conhecida como "Vulgata Latina. Foi esse o texto usado na primeira edição impressa da Bíblia, feita por Gutenberg, em 1542.
Como vimos, o Novo Testamento tinha sido escrito em grego. A primeira tradução em latim foi feita provavelmente lá pelo ano 150. Também do Novo Testamento São Jerônimo fez uma nova edição, revendo as traduções anteriores. É bom notar que, além dessa tradução latina, a antigüidade conheceu traduções em várias outras línguas.
Ainda fica em pé a pergunta inicial: será que todas essas traduções conservaram fielmente o sentido da Bíblia original? Vamos, então, ver como a Bíblia chegou até nós.
4. Os originais do Antigo Testamento
Vimos como foi longa a história da formação da Bíblia. Foi um trabalho realizado ao longo de muitos séculos, feito por muitas pessoas, em muitos lugares e circunstâncias diversas. Quando perguntamos se a nossa Bíblia corresponde aos originais, somos levados a perguntar também se esses originais escritos pelos próprios autores ainda existem. Não. Não existem mais. Nem isso é de se admirar. Os livros antigos, mesmo em sua fase de maior aperfeiçoamento técnico, eram "rolos" ou cadernos de pergaminho ou papiro. Esses materiais não podiam atravessar sem estragos os séculos. A traça, a umidade, o uso, as viagens, as guerras e os incêndios fizeram o seu trabalho de destruição.
A cópia mais velha de todo o Antigo Testamento em hebraico é lá do ano 950 depois de Cristo. Estava guardada na cidade de Alepo, na Síria. Durante algum tempo pensou-se que tivesse sido destruída num incêndio em 1950. Depois reapareceu e atualmente se conserva em Jerusalém. Desse texto existe uma cópia feita em 1008, que serviu como base para a edição atual do texto
hebraico.
A situação é semelhante, e até mesmo pior, para os outros escritos antigos. Podemos dar alguns exemplos. Sófocles, Ésquilo, Aristófanes são alguns escritores gregos. Entre os originais escritos por eles e as cópias que temos de suas obras, há uma distância de 1400 anos. Essa distância é de 1600 anos para as obras de Eurípedes e Catulo; 1300, para as obras de Platão.
Até há alguns anos atrás, o manuscrito mais antigo de uma parcela do Antigo Testamento era do século quarto depois de Cristo. Em 1902, foi encontrado, no Egito, um pedaço de papiro do século segundo depois de Cristo, contendo o Decálogo e um fragmento do Deuteronômio. Foram encontrados ainda outros papiros mais recentes, todos contendo apenas fragmentos do texto bíblico.
Em 1947, houve uma importante descoberta. Um pastor árabe estava procurando uma cabra perdida, nas margens rochosas do Mar Morto. Enquanto estava descansando, atirou uma pedra numa fenda nas rochas. Escutou um barulho de alguma coisa que se quebrava. Foi investigar, encontrou uma gruta e lá dentro alguns potes de barro, ainda cobertos com a tampa original. Continham rolos de pergaminho. Mais tarde foram feitas outras investigações e encontrou-se uma verdadeira biblioteca antiga. Seria a biblioteca de um antigo mosteiro de uma seita hebraica, abandonado pouco antes da destruição de Jerusalém, lá pelo ano 68 d.C.
Os rolos de pergaminho continham principalmente textos da Bíblia: eram cópias muito antigas, algumas do ano 200 ou 300 a.C. Pelos estudos feitos até agora, esses antigos manuscritos confirmam a fidelidade do nosso texto hebraico atual. Isso vem confirmar o que já tinha sido observado: apesar de todas as variantes encontradas nos manuscritos, podemos dizer que houve um interesse muito grande pela conservação fiel dos textos originais. As diferenças nunca são tão grandes a ponto de modificar fundamentalmente o sentido das passagens.
Que haja essas diferenças nos manuscritos, isso podemos compreender facilmente. Antigamente as cópias eram feitas a mão, uma a uma. Muitas vezes uma pessoa ia ditando o texto para vários copistas. Bastava que um ouvisse mal uma palavra e já havia uma variante no texto. Outras vezes, o copista esquecia uma letra ou uma palavra, ou repetia ou trocava. Ou, então, o texto original não estava muito claro. Acontecia também que um ou outro copista achava bom corrigir o texto original. É por isso que os especialistas fazem estudos cuidadosos, comparam os diversos manuscritos e assim estabelecem cientificamente o texto mais seguro. Nesse trabalho levam em conta também as antigas traduções. Esse estudo chama-se "Crítica Textual"; tem regras e métodos que agora não vêm ao caso.
5. Os originais do Novo Testamento
Atualmente temos uns cinco mil manuscritos, sendo que uns cinqüenta e três contêm todo o Novo Testamento. A situação do Novo Testamento é muito melhor que a de todos os escritores antigos. Da maioria deles temos manuscritos somente a partir do século nono d.C., e assim mesmo em número bem reduzido. Do Novo Testamento temos dezessete manuscritos do século quarto e vinte e sete do século sexto. Temos ainda citações encontradas em escritores do século segundo. Isso quer dizer que entre os originais e as cópias temos a distância de uns 300 anos apenas. Foi encontrado até um papiro do ano 130 que reproduz uma passagem do evangelho de João. É uma cópia feita uns quarenta anos depois do original do evangelista.
6. A Bíblia atual é fiel aos originais
Durante séculos os especialistas fizeram um longo trabalho de estudo e de comparação entre as diversas cópias do Antigo e do Novo Testamento. Chegaram à conclusão de que os nossos textos atuais são fiéis aos originais. É verdade que o texto hebraico atual apresenta alguns defeitos. Com o auxílio, porém, das antigas traduções é possível fazer a sua correção quase perfeita. A situação do Novo Testamento é muito melhor. O texto grego que temos praticamente não apresenta dúvidas. Pelo menos dúvidas que tragam dificuldades insuperáveis. Segundo os especialistas, o nosso Novo Testamento em grego chegou até nós quase exatamente como foi escrito pelos seus autores lá na segunda metade da primeiro século.
E as nossas traduções correspondem ao original? A fidelidade dessas traduções passa por um duplo controle. Os estudiosos que conhecem as línguas originais podem dizer até que ponto a tradução está bem feita. E há também o controle exercido pela Igreja, que vigia para que as traduções não falsifiquem o sentido da revelação feita por Deus. É claro que temos essa garantia só para as traduções que tenham a aprovação da autoridade da Igreja.
3.TODOS OS LIVROS DA BÍBLIA
Abrindo a sua Bíblia no índice, você vai ver ali a relação de 72 "livros": 45 do Antigo Testamento e 27 do Novo Testamento. Parece muito natural. Vamos, porém, fazer uma pergunta:
Por que todos esses e só esses livros fazem parte da Bíblia? Por que só eles e todos eles são Palavra de Deus?
Os judeus tinham muitos livros. E nem todos eram considerados como fazendo parte das "Escrituras", do conjunto de escritos considerados como normativos, como lei, para a vida do povo. Principalmente nos últimos 300 anos antes de Cristo, apareceram muitos livros de fundo religioso, de estilo bastante semelhante aos livros da Bíblia. Esses livros até mesmo tentavam se apresentar com a mesma autoridade de Deus. E, no entanto, acabaram ficando fora da lista oficial dos livros sagrados.
O mesmo aconteceu nos primeiros tempos da Igreja. Dentre todos os livros que circulavam entre os cristãos, somente alguns foram aceitos como "escritos por Deus".
Houve, pois, uma escolha por parte dos judeus e dos cristãos. Vamos ver por que foi feita essa escolha, quando foi feita e como.
1. O Cânon
A lista, o catálogo oficial dos livros que fazem parte da Bíblia tem um nome técnico: "Cânon. Sendo assim, os livros aceitos como "bíblicos" são chamados de "livros canônicos".
A palavra "Cânon" quer dizer: norma, regra, medida. Livros canônicos são, então, os livros sob a direção de Deus, e que devem servir de regra, medida e norma para a nossa fé e a nossa vida.
2. O que nos diz o Novo Testamento
Há duas passagens que devemos examinar. A primeira é da 2ª Carta a Timóteo
(3,16); a outra é da 2ª Carta de Pedro (1,20).
Timóteo era um discípulo de Paulo, escolhido por ele como responsável pela continuação de sua obra. Na segunda carta que lhe foi dirigida, lemos o seguinte: "Tu, porém, permaneces firme naquilo que aprendeste e de que tens convicção. Sabes de que mestres o aprendeste. E desde a infância conheces as sagradas letras. Elas te podem dar a sabedoria que conduz à salvação por meio da fé em Cristo Jesus. Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, convencer, corrigir e educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja completo, equipado para toda boa obra" (3,14-17). Nesse texto podemos notar o seguinte: Timóteo, desde pequeno, recebeu uma formação religiosa. Sabemos que era filho de judeus piedosos. Pois bem. Por essa formação, aprendeu a fé e aprendeu também a conhecer as Sagradas Escrituras como vindas de Deus. Como judeu e como cristão, ele acreditava que as Escrituras podiam "dar a sabedoria que conduz à salvação. Sabia também que tinham esse valor porque tinham sido inspiradas por Deus.
Vamos examinar um pouco o sentido dessa palavra: "inspirada". É a tradução de uma palavra grega que poderia também ser traduzida por "soprada", assoprada", "espirada. A palavra "espírito", que usamos tantas vezes, tem a mesma origem, liga-se à idéia de "sopro, vento". O vento sempre foi alguma coisa misteriosa para os antigos. Parece que vem de um lugar misterioso, pode ser sentido, mas não pode ser apalpado e segurado, parece um ser sem corpo. O vento é também uma força de destruição, ou uma brisa leve que refresca. Semelhante ao vento e igualmente misteriosa para os antigos era a nossa respiração. Enquanto respiramos, estamos vivos. E por isso chegaram quase a identificar a respiração com a própria vida, com a alma, com a força que nos faz viver. Espírito, sopro, respiração, era para eles essa realidade distinta de nosso corpo material e que nos faz viver. A partir daí passaram também a chamar de espírito, sopro, vento essa força misteriosa que parece arrastar o homem para o bem ou para o mal. Assim podemos compreender porque chamavam de "Espírito" a força divina, invisível e misteriosa que nos leva para a salvação. Muitas vezes encontramos na Bíblia referências ao "Espírito, Sopro de Javé", que orientava e dava força aos profetas, aos reis, a todos os que deviam fazer alguma coisa para o bem do povo. Por isso, quando São Paulo diz que a Escritura Sagrada foi "inspirada, soprada, espirada" por Deus, está querendo dizer que a Bíblia vem de Deus, é a manifestação de Deus para nós. Quem escreveu a Bíblia escreveu porque foi movido, levado, "soprado, animado" por Deus.
A afirmação de Paulo é completada pelo que lemos na 2ª Carta de Pedro (1,20). Pedro insiste na veracidade da sua doutrina. Não está ensinando coisas inventadas. Ele mesmo viu a majestade do Cristo transfigurado no alto do monte. A sua doutrina é também confirmada pela Escritura, pela palavra dos profetas. É por isso que, a partir do versículo 19, Pedro é levado a falar do valor da palavra dos profetas que encontramos na Escritura. Suas afirmações valem, de certo modo, para a Bíblia toda: "Deveis saber, antes de tudo, que nenhuma profecia da Escritura é objeto de interpretação pessoal, visto como jamais uma profecia foi proferida por vontade humana; mas sim sob o impulso do Espírito Santo é que falaram os homens da parte de Deus" (1,20-21). Conforme o que vimos logo acima, podemos ler assim esse final: "sob o impulso do Sopro Santo é que falaram os homens da parte de Deus".
4. Conceito católico de inspiração
Os ensinamentos oficiais da Igreja encontram-se no Concílio Vaticano I(1870), nas cartas encíclicas de Leão XIII (Providentissimus, de 1893), de Bento XV (Spiritus Paraclitus, de 1920), de Pio Xll (Divino afflante Spiritu, de 1943), e no Concílio Vaticano II.
A doutrina do Vaticano II, que reassume a doutrina anterior, encontra-se no capítulo terceiro da "Dei Verbum", a constituição sobre a Palavra de Deus, no número 11. Vamos estudar e analisar esse texto:
"Os livros do Antigo e do Novo Testamento, na sua totalidade, foram escritos sob a inspiração do Espírito Santo e, portanto, Deus é o seu autor. Para que os livros sagrados fossem escritos, Deus fez assim:
- escolheu alguns homens;
- serviu-se deles, com suas faculdades e capacidades;
- agiu neles e por eles para que, como verdadeiros autores,
- escrevessem tudo e só aquilo que Ele próprio queria".
Vamos repassar os diversos elementos:
A) Deus escreveu. Deus é o autor da Bíblia
É muito importante notar que a iniciativa é de Deus, dele é a responsabilidade pelo aparecimento da Sagrada Escritura. Do mesmo modo como decidiu livremente manifestar-se a nós, entrar em diálogo conosco, assim também livremente decidiu agir para que sua mensagem fosse conservada por escrito. Como vimos na história do aparecimento da Bíblia, a composição inicial não incluía necessariamente uma redação imediata por escrito. O "livro" podia, durante muito tempo, ser transmitido oralmente. Pois bem, já nessa fase da "composição" estava presente a ação divina.
B) Deus escolheu alguns homens
A liberdade divina mostra-se também na "escolha" das pessoas que seriam usadas. Escolha totalmente gratuita, não exigida por nenhuma qualificação prévia dos escolhidos.
Vamos notar ainda que Deus escolheu algumas pessoas e por meio delas quis comunicar-se a todos. É o que sempre notamos no modo de proceder de Deus para a nossa salvação: escolhe sempre alguns como instrumentos e intermediários seus. Não se dirige imediatamente, diretamente a cada um. Não dependemos só de Deus; dependemos também uns dos outros para a nossa realização.
C) Deus serviu-se desses homens, com suas faculdades e suas capacidades
Ninguém, mais do que Deus, tem respeito pelo homem. Deus nunca usa o homem como nós usamos um instrumento qualquer; nunca usa o homem como escravo. Sempre que escolhe alguém, é para que livremente colabore com ele como homem livre e inteligente. Os homens escolhidos para serem autores humanos da Bíblia não foram transformados em máquinas ou robôs manobrados. Serviram a Deus com todas as suas faculdades e capacidades humanas. Queriam escrever, sabiam o que escrever, sabiam o que pensar sobre as pessoas, os acontecimentos e as coisas, tinham e conservavam seu modo pessoal de sentir e de reagir, o seu jeito pessoal de se exprimir, a sua cultura grande ou pequena.
D)Deus agiu neles e por eles para que, como verdadeiros autores, escrevessem tudo e só aquilo que ele próprio queria
Isso quer dizer que Deus fez com que os hagiógrafos (os escritores sagrados) soubessem o que iam escrever e também quisessem escrever.
Deus fez com que eles soubessem o que iam escrever. Quando alguém desconhece uma coisa, podemos ensinar-lhe. Podemos ajudar alguém a compreender o que já conhece. Podemos ajudar alguém a encontrar a palavra exata para exprimir o que está vendo ou sentindo. Podemos ajudar alguém a julgar devidamente, a dar o valor exato às pessoas e aos seus atos, aos acontecimentos e às coisas. Nós podemos fazer tudo isso falando com a pessoa ou escrevendo para ela. Deus também pode fazer-nos saber alguma coisa, compreender, julgar e exprimir com palavra. Só que, para fazer isso, Deus não precisa de palavras. Pode entrar diretamente em contato conosco, pode atingir diretamente a nossa inteligência, pode iluminar-nos para conhecermos a verdade e exprimi-la com palavras certas.
Pois bem, foi isso que Deus fez com os escritores e compositores da Bíblia. Fez com que eles recebessem um conhecimento sobrenatural sobre Deus e sobre seus planos. Um conhecimento sobrenatural, que nunca poderiam de modo algum conseguir apenas com o esforço humano. Deu-lhes uma sabedoria sobrenatural para que soubessem dar um julgamento exato sobre as pessoas, os acontecimentos e as coisas. Fez com que escolhessem as palavras e o jeito, o estilo, convenientes para o que deviam comunicar.
Os hagiógrafos podiam conhecer muitos fatos, ou por terem visto ou por terem ouvido contar. Nesse caso, recebiam uma ajuda especial para que pudessem dar um julgamento certo e soubessem como se exprimir. Iluminados por Deus é que eles percebiam que era conveniente escrever o que sabiam. Em tudo isso podemos perceber como Deus e homem colaboravam estreitamente: o homem conhecia, julgava, escolhia, exprimia, mas estava sendo sempre iluminado e inspirado por Deus.
Já temos agora o hagiógrafo que sabe aquilo sobre o que poderia escrever. Iluminado por Deus faz julgamentos corretos. Percebe mesmo que seria conveniente escrever tudo isso. Mas para que Deus seja realmente o autor, o responsável pela Bíblia, não basta que por si mesmo o homem se resolva a escrever. Também essa decisão, também a iniciativa deve ser de Deus. É preciso que ele, agindo sobre a vontade do homem, o leve a agir.
Quando nós queremos que alguém faça alguma coisa, procuramos convencê-lo, apresentando motivos ou mandando ou forçando. Não foi assim que Deus levou os homens a escrever a Bíblia. Deus, com o seu poder, agiu diretamente sobre a vontade deles. Fez com que eles quisessem escrever. Quando pela sua graça, pela sua ajuda, Deus nos convida a fazer o bem, nós muitas vezes não fazemos o que Deus quer. Se fazemos, fazemos ajudados por Deus, mas a decisão é nossa, a responsabilidade é nossa, pois a ação é nossa e não de Deus. No caso da Bíblia, a situação é bem diferente: quando Deus resolve servir-se de uma pessoa para escrever, ele vai conseguir isso infalivelmente. Ele, que é nosso criador, que nos deu uma vontade livre, ele sabe como agir sem forçar a nossa liberdade, mas conseguindo infalivelmente que façamos o que ele quer.
Para compreendermos isso seria preciso que pudéssemos conhecer perfeitamente o próprio Deus. E Deus vai muito além de nossa compreensão. Apesar disso, mesmo sem compreender como, acreditamos que Deus pode nos levar a fazer livremente o que ele livremente decidiu.
Repetindo: o conhecimento, as afirmações, as verdades que encontramos na Bíblia são ao mesmo tempo de Deus e dos homens que as escreveram. A Bíblia existe porque Deus e os homens hagiógrafos resolveram escrever. Os homens colaboraram com Deus, mas a iniciativa partiu dele. Ele é o autor principal. Usando uma comparação, podemos dizer que os homens foram instrumentos de Deus. Instrumentos inteligentes e livres.
Uma pessoa que escreve, além de sua inteligência e vontade, usa também sua memória, sua imaginação, sua sensibilidade, seu gosto, sua arte, seu cérebro, seus nervos, seus músculos, suas mãos para escrever ou seus lábios para ditar. Pois bem: sobre tudo isso, houve uma ação positiva de Deus para que a Bíblia fosse escrita. Vemos assim, mais uma vez, como a Sagrada Escritura é totalmente obra de Deus e do homem.
Agora já podemos compreender melhor a idéia de inspiração que encontramos desde o começo deste capítulo: "Os livros do Antigo e do Novo Testamento, na sua totalidade, foram escritos sob inspiração do Espírito Santo e, portanto, Deus é o seu autor. Para que os livros sagrados fossem escritos, Deus fez assim: escolheu alguns homens, e serviu-se deles com suas faculdades e capacidades. Agiu neles e por eles para que, como verdadeiros autores, escrevessem tudo e só aquilo que Ele próprio queria".
Agora também já podemos ler o texto tal como foi escrito pelo papa Leão XIII em 1893: O Espírito Santo, por uma força sobrenatural, os impeliu e moveu a escrever; prestou-lhes assistência enquanto escreviam, de maneira a conceberem exatamente, quererem transmitir fielmente, e escreverem de modo a salvaguardar a verdade infalível, tudo e só aquilo que lhes era ordenado. Caso contrário, Deus não seria o autor da Escritura Sagrada".
5. A BÍBLIA NÃO ERRA
1. Mentalidade hebraica e linguagem bíblica
Vamos, pois, estudar inicialmente um pouco da mentalidade dos judeus e do seu jeito de se exprimir.
No salmo 62, versículo 6, lemos: Minha alma será saciada de gordura e de tutano, de meus lábios alegres ressoará o teu louvor. Nós poderíamos dizer: O que é isso? a alma não come! É verdade. Mas, para o judeu, um bom almoço era aquele com muita carne gorda. Um bom almoço alegra. Por isso o salmista, em vez de dizer: "Minha alma estará feliz junto de Deus", diz: "Junto de Deus minha alma será alimentada com carnes gordas e tutano. Pode não parecer piedoso. Mas assim é que rezavam.
No salmo 118,109, encontramos: "Minha vida está sempre em minhas mãos". Ter alguma coisa nas mãos é estar pronto a entregar, a perder. Ter a vida nas mãos" queria dizer: estou pronto a perder a minha vida, estou quase morrendo, estou em grande perigo.
Com a mão pegamos as coisas, tomamos posse. Em vez de dizer que alguém era rico, os judeus diziam: "Ele tem a mão grande. Quem era pobre ou avarento "tinha as mãos pequenas".
Esses exemplos bastam para mostrar como os judeus usavam uma linguagem muito concreta, quase sem termos abstratos. Aliás, hoje ainda usamos linguagem semelhante. Se alguém nos diz que "está na fossa", "foi para o brejo", "foi para o buraco", entendemos logo o que quer dizer e não perguntamos qual a fundura do buraco nem onde é o brejo.
Como os orientais em geral, os judeus gostavam de falar de um modo teatral. Assim, sem muitas explicações, a idéia se tornava clara, quase palpável. Usavam expressões que, analisadas friamente, são exageros. Um rei, para dizer que seu exercito era numeroso, dizia que a poeira da Samaria não seria bastante para encher as mãos de seus soldados(1º Livro dos Reis 20,10). Em vez de dizer: "Houve fome em muitos países", diziam: "Houve fome na terra inteira. Há uma passagem do Evangelho(Lc 14,26) em que Jesus diz: "Quem não odiar pai, mãe... não pode ser meu discípulo. Odiar, no caso, significa amar menos do que ao Cristo.
A língua hebraica não tinha os mesmos recursos das línguas modernas. Nós temos palavras que indicam claramente a comparação entre os termos. Nós dizemos claramente: É maior o número dos chamados e menor o número dos escolhidos. Deus quer mais a misericórdia do que o sacrifício. Os judeus diziam: "Muitos são os chamados e poucos os escolhidos" (Mt 22,14). "Quero a misericórdia e não o sacrifício" (Mt 9,13).
Usavam comparações e imagens que não podem ser tomadas ao pé da letra. As idéias abstratas estavam ligadas a coisas materiais. Por exemplo:
Fraqueza: carne, cinza, poeira, flor que murcha, cera derretida.
Força: montanha, rochedo, bronze, tempestade, exército.
Glória: luz, brilho, relâmpago.
Fartura: leite, mel, água, azeite.
Esse modo concreto de pensar e de falar é que levava os judeus a falarem das coisas e de Deus usando expressões que realmente só se aplicam aos homens. Por exemplo:
as cisternas, os montes, as árvores devem bater palmas e gritar de alegria;
o sangue inocente pede vingança divina;
Deus tem rosto, nariz, ouvidos, boca, lábios, olhos, voz, braços, mãos e pés. Está revestido de um manto, senta-se num trono de rei. Tem desgosto, ódio, sentimentos de agrado, alegria, arrependimento. Tem até um nome próprio.
Na linguagem da Bíblia, os números não têm a mesma importância nem o mesmo significado que têm para nós. Quando damos um número, procuramos ser matematicamente exatos; interessa-nos a quantidade real. Para os judeus os números tinham todo um significado simbólico, indicava o sentido dos acontecimentos ou as qualidades das pessoas. A idade dos patriarcas, cem ou mais anos, não era contada em razão dos anos realmente vividos, mas em razão da veneração que mereciam, do quanto eram queridos por Deus. No capítulo quinto do Gênesis, encontramos uma série de dez gerações desde Adão até o patriarca Noé. Dez era apenas o número que indicava uma série completa e final. Falando de dez patriarcas, o hagiógrafo queria abarcar todos os acontecimentos, todas as gerações entre Adão e Noé, fossem lá quais e quantos fossem. Não estava, de modo algum, querendo ensinar que de fato tinha havido apenas uma série de dez gerações. De modo semelhante, Jesus fala das "dez virgens"; São Paulo menciona os "dez adversários" que nos tentam separar do Cristo (Rm 8,38s), e os "dez vícios" que nos podem excluir do Reino de Deus (1Cor 6,9s). Os meses do ano são doze. Por isso esse número também significava a perfeição, a totalidade.
Quando damos um número, estamos de fato excluindo qualquer quantidade maior ou menor, a não ser que digamos claramente o contrário. Os judeus indicavam o número que interessava no momento. Podemos dar alguns exemplos: Mc. 11,2; Lc 19.30 e Jo 12,14 dizem que Jesus entrou em Jerusalém montado em um jumento. Mt 21,2 fala, porém, de uma jumenta e de um jumentinho. Mc 10,46 diz que, ao sair de Jericó, Jesus curou um cego; Mt 20,30 diz que dois foram os cegos curados. Além do mais, precisamos ainda lembrar que muitas vezes houve engano dos copistas na transcrição dos números. Engano fácil de entender já que os números eram representados com letras do alfabeto, bastante parecidas entre si.
Bastam esses exemplos para percebermos o cuidado necessário para termos uma correta compreensão dos textos bíblicos.
7. COMO LER A BÍBLIA
O Segundo Concílio do Vaticano nos recomenda muito a leitura da Bíblia. Lembra até uma frase de São Jerônimo: "Quem não conhece as Escrituras, não conhece Cristo".
Logo a seguir o Concílio diz: "Lembrem-se de que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada pela oração para que se estabeleça o diálogo entre Deus e o homem. Como diz Santo Ambrósio, lendo a Escritura, nós ouvimos Deus; pela oração, nós lhe falamos.
1. Para uma leitura proveitosa da Bíblia é preciso ter algumas noções básicas, algumas informações sobre o ambiente em que foi escrita, sobre o seu estilo etc. Foi isso que tentamos ver até agora, de um modo muito simples e superficial, é claro.
2. O mais importante, porém, é termos uma atitude correta diante da Bíblia: uma atitude de fé. Em primeiro lugar, temos de acreditar que a Bíblia é para nós a palavra de Deus. Quem se aproximar sem essa convicção, poderá satisfazer sua curiosidade, poderá encontrar beleza literária, poderá até se tornar um "especialista. Não encontrará, porém, o alimento da palavra que salva.
Essa atitude de fé, essa atitude de quem acredita, exige que aceitemos a Bíblia como palavra de Deus recebida na Igreja, nossa comunidade de fé e de vida. Precisamos ler a Bíblia com a Igreja para ouvirmos realmente a palavra de Deus.
3. Pela fé, somos levados à docilidade, à atitude de quem está disposto a ser ensinado, de quem quer ouvir e aprender. Docilidade que é "abertura" para as coisas divinas, que devem ser julgadas e compreendidas de uma forma diferente da compreensão e do julgamento que temos para com as coisas humanas. Essa compreensão superior só nos é possível sob a iluminação da graça de Deus. Do poder de Deus que nos dá uma "co-naturalidade", uma sintonia com as realidades divinas. Como disse Jesus, só o homem pode compreender o que existe no coração do homem. Do mesmo modo, só podemos compreender o que há no coração de Deus na medida em que, pela graça, participamos de algum modo da natureza do próprio Deus.
Isso quer dizer que, para podermos compreender a Bíblia, devemos estar participando da vida divina pela graça. O pecado, que nos separa de Deus, fecha-nos também os olhos para a compreensão das coisas divinas.
4. Sendo assim, é fácil perceber que a nossa leitura da Bíblia deve ser uma "oração". Em vários sentidos. A começar pela oração de quem pede a Deus que nos fale e que nos abra o coração. De quem insiste na prece diante de uma passagem mais obscura ou que nos parece encerrar uma mensagem mais rica do que percebemos à primeira vista. Prece de quem se sente sem forças para aceitar a exigência de certos convites ou mesmo de certos mandamentos e normas. Oração de louvor, ao percebemos a grandeza de Deus, do seu amor, da sua bondade, da sua misericórdia. É claro que essa atitude de oração exige que a nossa leitura seja calma, vagarosa, tranqüila, ouvindo, saboreando, assimilando. Afinal, o importante não é ler muito, mas ler bem.
5. Sim, porque devemos ler a Bíblia não apenas para saber, mas para viver. Para aos poucos começarmos a ser como Deus quer que sejamos. Para irmos assimilando a sua maneira de pensar, julgar e querer. Essa mudança em nossa vida, geralmente, não acontece de repente, nem toda de uma vez. Supõe um contato demorado, repetido e continuado com a Palavra de Deus. E, uma vez que a nossa vida não é sempre igual, será preciso sabermos procurar na Bíblia a orientação apropriada para cada situação que estivermos vivendo no momento. Tomando sempre o cuidado, nunca é demais repetir, de não obrigarmos a Bíblia a dizer o que queremos ouvir.
6. Não é só a nossa vida pessoal e "religiosa" que devemos pôr em julgamento diante da palavra de Deus. É toda a nossa vida, em toda a sua complexidade e em todos os seus aspectos, mesmo aqueles que nada têm a ver com "religião". É toda a vida da sociedade que devemos tentar compreender e julgar à luz da Bíblia: a política e a economia, as relações de trabalho, a comunicação, a arte, o lazer, toda a realidade humana, afinal. Do presente e do passado, tentando ainda encontrar rumos para o futuro.
7. Levando em conta que a Bíblia se formou por inspiração de Deus, mas ao mesmo tempo se formou no contexto da vida de uma comunidade o povo judeu e depois a Igreja , uma boa leitura da Bíblia supõe um contato contínuo com essa mesma comunidade. Primeiro pela participação na sua vida e na sua atividade. Depois, por um intercâmbio de experiência, esclarecimento, anseios e preocupações. Pela procura de irmãos mais esclarecidos ou mais experientes que nos esclareçam e resolvam nossas possíveis dúvidas. Exatamente aí está a grande utilidade dos "Círculos Bíblicos" e de outros grupos semelhantes para a leitura e a reflexão sobre a Bíblia. E sempre que possível, ou necessário, podemos encontrar um auxílio muito grande nos jornais, revistas, livros, pregações, cursos e programas de rádio oferecidos pela nossa comunidade.
As páginas que você leu não terão sido inúteis, se você agora se sentir animado a procurar maiores esclarecimentos e, principalmente, se sentir animado a um contato continuado com a Bíblia, a Palavra de Deus encarnada em pobres palavras humanas.
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