Um assunto que tem provocado muita polêmica em nossos dias
é o ensino do moderno movimento de batalha espiritual acerca de objetos que
têm o poder de abençoar e amaldiçoar aqueles que os tocam ou possuem. Nesse
pequeno artigo, procuro compreender esse ensino e oferecer uma avaliação. Objetos
que Trazem Bênção Embora os líderes dessas igrejas insistam que esses
objetos abençoados funcionam apenas como apoio para a fé dos crentes, ao fim,
acabam sendo usados como talismãs, fetiches e outros objetos
"carregados" de poder espiritual. Os seus possuidores devem usá-los
de acordo com algum tipo de ritual, após o culto. A água pode ser bebida em
casa, após a oração de consagração. O "cajado de Moisés" deve ser
usado para bater naquilo que o crente gostaria de ter (um carro novo, por
exemplo). Lenços ungidos devem ser carregados junto ao corpo por determinado
tempo, geralmente durante o tempo de uma corrente de oração.(1) Muitas vezes objetos são "abençoados" nessas
igrejas com o objetivo de espantarem e expelirem demônios. A idéia que está
por detrás desse uso religioso de artigos e objetos é o de que as entidades
espirituais (anjos e demônios) podem ser atingidas através dos sentidos como
cheiros, cores, gosto e vozes. Nesse ponto os cristãos do primeiro século se
afastaram significativamente das práticas exorcistas do Judaísmo da sua
época, que foram desenvolvidos no período intertestamentário. Os métodos
rabínicos de tratar com demônios incluía o uso de tochas de fogo à noite,
amuletos, filactérios,(2) fórmulas mágicas, fumigações, entre outros. A idéia
era que essas coisas teriam em si algum tipo de poder mágico contra os
demônios.(3) No cristianismo primitivo, entretanto, a idéia de que demônios
pudessem ser atingidos através de sons, cheiros ou coisas materiais e
tangíveis, está ausente. É importante dizer que não duvido da sinceridade e da
boa-fé dos que empregam esses objetos. Entretanto, podemos estar sinceramente
enganados no que diz respeito ao culto a Deus, como os judeus na época de
Paulo (Rm 10.1-2). É minha convicção que o uso desses objetos como apoio para
fé ou canal de bênçãos não faz parte do culto agradável a Deus que nos é
ensinado nas Escrituras. Entendendo
o uso de objetos na Bíblia Devemos interpretar essa passagem da mesma forma como
interpretamos os relatos do Antigo Testamento sobre o cajado de Moisés (Ex
8.5,16) e o manto de Elias (2 Re 2.8,14). Esses objetos foram veículos
materiais do poder miraculoso desses homens. O propósito das narrativas
acerca do poder que havia neles foi mostrar o extraordinário poder de Deus
nas vidas dos seus possuidores, comprovando que a sua mensagem vinha
realmente da parte de Iavé. O ponto é que esse poder era tão grande que até
as coisas com as quais Moisés e Elias tinham contato diário se tornavam
canais através dos quais ele era transmitido. Além dessas ocorrências no Antigo Testamento mencionadas
acima, outros eventos são citados como justificativa para o uso de objetos
como veículos do poder divino. Moisés fez uma serpente de bronze (Nm 21.9).
Eliseu usou um prato novo com sal para miraculosamente sanar as águas de
Jericó (2 Re 2.19-22), um pouco de farinha para purificar uma comida
envenenada (2 Re 4.38-41), um pau para fazer flutuar um machado que caiu no
rio (2 Re 6.1-7). Sob seu comando, as águas do Jordão serviram para curar a
lepra de Naamã (2 Re 5.1-14). Seu bordão parece que era usado para realizar
milagres (2 Re 4.29) e seus ossos ressuscitaram um morto (2 Re 13.20-21). O
profeta Isaías usou uma pasta de figos para curar Ezequias (2 Re 20.7). Alguns eventos narrados no Novo Testamento são também
citados como prova. As vestes de Jesus tinham poder curador. Não somente a
mulher com um fluxo de sangue foi curada ao tocá-las (Lc 8.43-46), mas muitas
outras pessoas doentes (Mt 14.36; Mc 6.56; cf. Lc 6.19). Em pelo menos duas
ocasiões, Jesus usou saliva para curar cegos (Mc 8.22-26; Jo 9.6-7), e em
outra, para curar um mudo (Mc 7.33). Aparentemente, a sombra de Pedro, após o
Pentecostes em Jerusalém, acabava por curar a quem atingisse (At 5.15). Devemos entender, entretanto, qual o objetivo dessas
narrativas. Em todas elas, o conceito é sempre o mesmo. Jesus e os apóstolos
eram tão cheios do poder de Deus que as coisas com as quais tinham contato
íntimo se tornavam como que em extensões deles, para curar e abençoar as
pessoas. O objetivo é idêntico: enfatizar a enormidade do poder de Deus em
suas vidas, e assim, atestar que a mensagem pregada por eles, bem como pelos
profetas do Antigo Testamento, vinha de Deus. A prova eram os poderes
miraculosos tão extraordinários que até mesmo vestes, bordões, ossos, saliva,
sombra e lenços desses homens transmitiam o poder curador de Deus que neles
havia. É dessa forma que devemos entender o relato de Atos 19 sobre o poder
curador dos lenços e aventais de Paulo. Evidentemente, essas passagens não servem como prova de
que, hoje, as igrejas evangélicas podem abençoar objetos e usá-los para
expelir demônios, proteger seus possuidores contra forças negativas e curar
moléstias. Notemos as principais diferenças entre o uso destes objetos nos
relatos bíblicos e o uso que é feito hoje pelas igrejas de libertação. 1. Foram usados como
símbolos – Em vários casos, o papel de objetos na execução dos milagres
bíblicos é melhor entendido como tendo sido simbólico. De alguma forma estavam relacionados à natureza do
milagre: uma serpente de bronze para curar mordeduras de serpentes, um pedaço
de pau para fazer um machado flutuar, sal e farinha para purificar águas e
comida (os dois elementos eram usados nos sacrifícios), ossos para trazer
vida e água do Jordão para "limpar" a lepra. Nas igrejas de
libertação, muito embora se diga que os objetos funcionam simbolicamente como
apoio para a fé, acabam sendo aceitos pelos fiéis menos avisados como
possuindo em si mesmos alguma
virtude ou poder. 2. A natureza dos milagres
em que foram empregados – Os objetos fizeram parte de milagres que não
vemos serem repetidos hoje. A melhor maneira de provar que o uso de objetos
ungidos hoje opera a mesma liberação do poder divino como nos eventos
relatados na Bíblia, seria abrir rios, ressuscitar mortos, curar leprosos,
cegos e aleijados, sanear águas amargas e limpar comidas envenenadas usando
objetos pessoais dos missionários e obreiros dessas igrejas. Entretanto, os
"milagres" efetuados pelos objetos ungidos nas igreja de libertação
nem de perto se assemelham aos prodígios extraordinários narrados nas
Escrituras. 3. Seu uso
limitou-se ao momento do milagre – Nenhum dos objetos empregados na
Bíblia preservaram algum "poder" em si mesmos após o milagre ter
ocorrido. A serpente de bronze, até onde sabemos, não foi mais usada para
curar mordidas de serpentes após o incidente no deserto, muito embora os
judeus supersticiosos passassem a adorá-la como a um deus. É natural supor
que Eliseu, após usar o manto de Elias para abrir as águas, usou-o
normalmente como peça do seu vestuário, sem que o mesmo exercesse qualquer
poder mágico nas coisas em que tocava. O sal, a farinha e o pedaço de pau que
ele usou para fazer milagres foram tirados da vida normal e retornaram a ela
após seu uso. Não retiveram qualquer propriedade miraculosa em si mesmos.
Semelhantemente, os lenços e aventais de Paulo tiveram um uso especial
somente em Éfeso, e provavelmente somente durante um determinado período, ao
longo dos três anos que o apóstolo passou ali. Em contraste, as igrejas da
libertação ungem e abençoam objetos e atribuem a eles efeitos que permanecem
muito tempo após a cerimônia. É algo bem diferente do uso ocasional feito
pelos profetas e apóstolos. 4. Os objetos
estavam ligados à pessoa dos homens de Deus – Alguns dos objetos usados
eram coisas pessoais dos homens de Deus, como a capa de Elias, o bordão de
Eliseu, as vestes de Jesus, os lenços e aventais de Paulo e, num certo
sentido, a sombra de Pedro. Eles só foram empregados por isso. O alvo era mostrar
o extraordinário poder de Deus sobre tais homens. Quando refletimos no fato
de que somente coisas pessoais dos profetas, do Senhor Jesus e dos apóstolos
foram usadas, perguntamo-nos se nossos objetos pessoais teriam o mesmo poder.
A resposta humilde deve ser "não". Os profetas, o Senhor e os
apóstolos foram pessoas especiais e pertenceram a uma época especial e única
dentro da história da revelação. A suspeita de que nossos objetos pessoais
são impotentes para realizar milagres fica ainda mais fortalecida quando não
descobrimos nas Escrituras qualquer exemplo de coisas dos crentes comuns
sendo usadas com esse fim.(4) 5. Nenhum dos
objetos empregados foi ungido ou abençoado – Essa é uma diferença
fundamental. Nas igrejas de libertação, os objetos são ungidos, abençoados,
fluidificados e consagrados através da oração e da imposição de mãos dos
pastores e obreiros, depois do que, passam supostamente a ter poderes
especiais. No entanto, em nenhum dos casos mencionados nas Escrituras, os
objetos empregados nos milagres passaram, antes, por uma cerimônia de
consagração. A Bíblia desconhece totalmente a "unção" de coisas com
o fim de serem empregadas em atos miraculosos, para atrair as bênção de Deus,
ou ainda, para expelir demônios e doenças. É verdade que no Antigo Testamento
alguns objetos, utensílios e mobília do tabernáculo, e depois, do templo,
foram ungidos com sangue e óleo. Mas o propósito não era investir essas
coisas de poderes especiais, e sim separá-las
do seu uso comum para o uso sagrado nos rituais de sacrifício. Eliseu não
ungiu nem consagrou, pela oração, o sal, a farinha e o pedaço de árvore que
usou para operar milagres. Nem Isaías ungiu a pasta de figo para curar a
úlcera de Ezequias. Nem mesmo a serpente de bronze passou por uma consagração,
antes de ser erigida diante do povo envenenado pelas serpentes. Os lenços e
aventais de Paulo não passaram pela imposição de mãos do apóstolo antes de
serem levados aos doentes e endemoninhados. O que dava "poder"
àqueles objetos era o fato de que pertenciam, ou foram manipulados, por
pessoas sobre quem o poder de Deus repousava de forma extraordinária. A conclusão inescapável é que não existe qualquer
fundamento bíblico para que, hoje, unjamos e abençoemos objetos com o
propósito de transmitir, através deles, uma medida do poder de Deus. Mais uma
vez repito: creio que Deus faz milagres hoje. Creio que ele poderia usar o
que quisesse para fazer isso. Entretanto, creio também que Deus nos revela em
Sua Palavra os seus caminhos e seus meios de agir, para que não sejamos
iludidos pelo erro religioso. E se vamos usar as Escrituras como regra da
nossa prática, bem como critério para discernirmos a verdade do erro,
acabaremos por rejeitar a idéia de que, pela oração e unção, determinados
objetos repassam uma bênção de Deus aos seus possuidores. Objetos
que Trazem Maldição Portanto, caso um cristão venha a ter em sua casa,
escritório ou local de trabalho, qualquer um desses objetos, estará dando
ocasião para que os demônios (as verdadeiras entidades espirituais associadas
com esses objetos) prejudiquem sua vida material e espiritual. A idéia é que
objetos como ídolos, imagens, esculturas, quadros e fotos se tornam pontos de
contato para os demônios, que sempre estão procurando materializar-se através
de alguma coisa e assim atormentar os homens.(5) Admitir tais coisas dentro
de casa, seria convidar os demônios a entrar e nos atormentar. Nas palavra de
Jorge Linhares, Não basta que abençoemos
os nossos bens, nossos pertences. precisamos verificar se não temos permitido
adentrar em nosso lar objetos que são por natureza amaldiçoados – objetos que
temos de lançar fora e de preferência, queimar ou destruir.(6) Uma outra coisa que segundo o pensamento da "batalha espiritual"
permite a entrada de demônios na vida da pessoa é o ingerir comidas
"trabalhadas" em centros de umbanda. Num capítulo entitulado
"Como os demônios se apoderam das pessoas", do livro Orixás, Caboclos & Guias, Edir
Macedo inclui comidas sacrificadas a ídolos como um desses meios. Ele conta o
caso de um homem que ingeriu uma comida "trabalhada" e foi atacado
por um espírito maligno que o fazia sofrer do estômago. Ele conclui dizendo,
"Todas as pessoas que se alimentam dos pratos vendidos pelas famosas
‘baianas’ estão sujeitas, mais cedo ou mais tarde a sofrer do
estômago."(7) Mark Bubeck, que ficou conhecido no Brasil por seu livro O Adversário, escreveu recentemente um
outro livro sobre como podemos criar nossos filhos em meio aos constantes
ataques que os demônios fazem ao nosso lar. Ao fim do livro, Bubeck adicionou
um apêndice, contendo questionários cujas perguntas procuram levar os
leitores a descobrir as portas pelas quais têm permitido aos demônios
entrarem no lar e atacar os filhos. Uma das portas é a presença em casa de
objetos amaldiçoados, como amuletos, fetiches e talismãs, livros sobre
ocultismo, bruxaria, astrologia, mágica, adivinhação, e utensílios ou objetos
usados em templos pagãos, rituais de feitiçaria, ou ainda na prática da adivinhação,
mágica ou espiritismo. A sugestão de Bubeck é que a presença dessas coisas no
lar permite aos demônios que penetrem na casa e atormentem os filhos.(8) Uso
de objetos no paganismo Maldições
trazidas por objetos consagrados a demônios Timothy Warner conta a história de uma estudante crente,
por natureza uma pessoa bem ativa e enérgica, que começou a ficar mais e mais
deprimida, tendo dificuldade em dormir e estudar, durante seus estudos de
francês, em preparação para o trabalho missionário na África. Um missionário
descobriu, após examinar o dormitório onde ela morava, que o ocupante
anterior havia escondido no mesmo diversos objetos ocultistas. Warner então
explica: "alguns dos demônios associados com os objetos haviam se
apegado ao quarto e à mobília". O missionário orou determinando aos
demônios que fossem embora, e a moça pode voltar a dormir normalmente.(13) O pressuposto por detrás desse tipo de relato é que esses
objetos abrem a porta para os demônios, visto que foram consagrados a eles
nos rituais de magia e ocultismo, e mesmo no catolicismo. O fato de que uma
pessoa é crente não evitará que seja oprimida pelos espíritos associados a
objetos deste tipo. Existem algumas dificuldades com esse conceito. No que se segue,
vamos explicar algumas delas. 1) O conceito da
habitação de demônios em objetos físicos. Warner conta a história de uma
família de missionários nas Filipinas cujo filho era assediado por um demônio
que morava numa árvore do jardim da casa onde moravam.(14) O conceito de
entidades espirituais morando em árvores remonta à mitologia grega e ao
paganismo em geral. As Escrituras desconhecem esse conceito e falam dos
demônios como atuando especificamente em seres vivos, humanos ou animais.
Entretanto, é comum lermos na literatura do movimento de "batalha
espiritual" que espíritos malignos podem habitar em coisas como árvores,
imagens, objetos, casas, etc. Às vezes Apocalipse 18.2 é citado como prova de que
demônios podem morar em lugares amaldiçoados: Então, exclamou com
potente voz, dizendo: Caiu! Caiu a grande Babilônia e se tornou morada de
demônios, covil de toda espécie de espírito imundo e esconderijo de todo
gênero de ave imunda e detestável. Aqui temos o anúncio da queda de Babilônia feito por um
anjo de Deus. Notemos, porém, o seguinte, antes de concluirmos que o texto
prova que demônios moram em ruínas! (1) A passagem é evidentemente alegórica.
Nos dias de João, Babilônia já não mais existia. (2) João está citando
Jeremias 50.39 e Isaías 13.21. Esses dois profetas referem-se à queda e
destruição da cidade de Babilônia que existiu em seus dias. A desolação que
lhe haveria de sobrevir, como resultado do castigo divino, ia ser tão grande,
que a grande cidade, outrora populosa e opulenta, iria se tornar em um grande
montão de ruínas. Com o propósito de enfatizar a desolação, os profetas
descrevem as ruínas como sendo habitadas por feras e animais do deserto:
chacais, avestruzes, corujas e hienas. A Septuaginta, ao traduzir o texto
hebraico de Isaías 13.21, traduziu "bodes" por
"demônios".(15) O apóstolo João, ao citar essas passagens e
aplicá-las figuradamente à Babilônia espiritual, o reino das trevas que será
destruído por Cristo, acrescenta, além dos animais mencionados pelos profetas,
os demônios e espíritos imundos, seguindo a tradução da Septuaginta (Ap
18.2). (3) Evidentemente, a passagem não está dizendo que essas entidades
habitam em ruínas de cidades. Seu sentido óbvio é que Deus entrega a
humanidade ímpia e endurecida que o rejeita à desolação espiritual e aos
demônios. (4) Lembremos ainda que o Senhor Jesus ensinou que os espíritos
imundos não encontram repouso em lugares áridos (Mt 12.43-45). A conclusão é
que não existe argumentos bíblicos suficientes para provar que espíritos
imundos moram e habitam em coisas como objetos, casas, árvores, etc. 2) O estabelecimento
de um pacto com esses demônios pela posse de objetos a eles consagrados.
Nenhum adepto do movimento de "batalha espiritual" estaria disposto
a admitir que um incrédulo entra em algum tipo de pacto ou concerto com Deus
simplesmente por ter uma Bíblia em casa, ou mesmo por ter participado
inadvertidamente da Ceia do Senhor numa igreja evangélica. Entretanto, está
pronto a afirmar que cristãos verdadeiros podem ser atacados, amaldiçoados e
demonizados se tiverem em casa livros sobre ocultismo ou objetos ocultistas,
para com os quais não tenha nenhuma atitude religiosa. É óbvio que a simples
posse desses objetos não nos expõe a ataques satânicos da mesma forma que a
posse de uma Bíblia não expõe um incrédulo às investidas do Espírito Santo, a
não ser que abra suas páginas e comece a ler, com seu coração aberto e
desejoso de aprender as coisas de Deus. 3) Uma outra dificuldade é o conceito de que crentes, que
nem estão conscientes de que esses objetos foram usados em rituais
ocultistas, possam ser oprimidos pelos demônios associados com esses objetos.
Não é suficiente escutarmos os relatos e as experiências, como a do
missionário acima. Como já insistimos em quase cada capítulo desse livro, por
mais sérias e válidas que sejam, experiências não podem servir como
autoridade final nessa questões. É preciso examinar as Escrituras, seguindo
as regras simples de interpretação, que procuram deixar o texto sagrado falar
livremente. E o que encontramos nelas pode ser resumido nas palavras de
Balaão, falando pelo Espírito de Deus: "Pois contra Jacó não vale
encantamento, nem adivinhação contra Israel" (Nm 23.23). Coisas
amaldiçoadas na Bíblia 1) Passagens que
condenam o uso de amuletos. É defendido que os pendentes de ouro que as
mulheres israelitas traziam nas orelhas, ao sair do Egito, e com os quais se
fez o bezerro de ouro, eram amuletos (Ex 32.2-4), bem como as arrecadas
(brincos) que Jacó arrancou das orelhas da sua família, junto com os ídolos
(Gn 35.1-4).(16) O uso de cordões ou cadeias com pendentes é chamado pelo
profeta Oséias de "adultério entre os peitos" (Os 2.2). A atitude
das Escrituras em relação a esses objetos é de condenação e rejeição. O
profeta Isaías, ao condenar a vaidade do vestuário das mulheres israelitas,
faz referência às luetas que elas traziam em seu pescoço (Is 3.18). Eram
cordões ou cadeias de ouro com o símbolo da lua crescente, usados para
proteger contra maus espíritos. Esse era um costume pagão. Eles usavam
amuletos assim até mesmo no pescoço de camelos (Jz 8.21,26). É preciso notar, entretanto, que condena-se não tanto o
uso em si desses objetos, mas a atitude
religiosa que os israelitas tinham para com eles. Eles o usavam
conscientemente como amuletos protetores, como fetiches mágicos, como se
fossem encantamentos contra maus espíritos. Foi contra essa prática de magia
e ocultismo que os profetas falaram. Evidentemente, ter objetos desse tipo em
casa pode não ser conveniente ao cristãos por vários motivos (veja a
conclusão desse capítulo). Entretanto, se eles não têm qualquer sentido,
significado ou relação religiosos, o cristão não se enquadra na condenação
emitida pelos profetas. 2) Passagens que
condenam imagens. Existem inúmeras passagens nas Escrituras que condenam
a idolatria, isso é, o ato de prestar culto à imagens bem como às realidades
espirituais que elas representam. Um fator que contribui significativamente
para essa condenação é a relação entre a idolatria e os demônios. Nos tempos
antigos, mágica, adivinhação, feitiçaria, bruxaria e necromancia (invocação de
mortos) estavam tão intimamente ligados à idolatria, que era quase impossível
separar uma coisa da outra. Moisés identifica os deuses pagãos com demônios
(Dt 32.17; cf. Sl 106:36-37). O mesmo faz Paulo (1 Co 10.19-20) e o apóstolo
João (Ap 9.20). Acredito que o mesmo é verdade ainda hoje. Por detrás da
moderna idolatria estão os antigos demônios. Entretanto, mais uma vez é preciso observar que as
Escrituras condenam propriamente o confeccionar e possuir imagens de
entidades pagãs com propósito religioso: Não terás outros deuses
diante de mim. Não farás para ti imagem
de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem
embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o SENHOR,
teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até à
terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia até
mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos (Ex 20.3-6). Os puritanos entenderam esse mandamento como determinando
que nos livrássemos, se possível, de todos os monumentos à idolatria, e
proibindo o culto a imagens representativas de Deus ou de falsos deuses e o
possuir supersticiosamente artigos ou objetos.(17) A preocupação sempre é
contra a idolatria em si. O
mandamento contra a idolatria não dever ser entendido como proibindo
esculturas, representações, quadros e outros objetos artísticos em geral. O
fato de que o culto a Deus deve ser em Espírito (Jo 4.24) não quer dizer, nem
mesmo, que Deus proíba a confecção de objetos representativos de realidades
espirituais. Ele próprio determinou que os israelitas fizessem imagens de
ouro de querubins, que deveriam ser colocadas sobre a tampa da arca, o
propiciatório (Ex 25.18-20). Noutra ocasião, mandou que Moisés fizesse uma
serpente de bronze (Nm 21.8-9). Ela foi mais tarde destruída somente por que
os israelitas passaram a adorá-la, provavelmente como uma relíquia provinda
dos tempos de Moisés (2 Re 18.4). O motivo pelo qual o Senhor determinou que
os israelitas destruíssem totalmente as imagens dos deuses cananitas, ao se
apossarem da terra, foram evitar que os israelitas fossem atraídos à
idolatria (Dt 7.1-5) e evitar a cobiça para com o ouro e a prata que
revestiam essas imagens. Por esses motivos, não deveriam meter esses ídolos
dentro de suas casas, pois eram
amaldiçoados por Deus e representariam uma tentação para praticarem a
idolatria (Dt 7.25-26). Mais uma vez percebemos que é o perigo da idolatria
que o Senhor queria prevenir. As imagens em si mesmo nada eram. Preciso reiterar minha convicção de que os cristãos
deveriam evitar possuir qualquer objeto relacionado com a idolatria e
práticas ocultas. Entretanto, acredito que isso deve ser feito pelas razões
corretas e não por mera superstição e crendice. Atos
19 e a quebra de maldições de objetos Muitos dos que creram
vieram confessando e denunciando publicamente as suas próprias obras. Também
muitos dos que haviam praticado artes mágicas, reunindo os seus livros, os
queimaram diante de todos. Calculados os seus preços, achou-se que montavam a
cinqüenta mil denários. As "artes mágicas" no mundo antigo incluíam a
adivinhação, o exorcismo, o uso de fórmulas secretas, a conjuração e a
invocação dos mortos, pactos com entidades espirituais, encantamentos e
rituais com o objetivo de ganhar o favor dos espíritos. Essas coisas eram
usadas tanto para atingir e ferir inimigos quanto para curar doentes. Elas
são bastante populares ainda hoje. Havia muitos magos e bruxos no mundo do século I, na época
de Jesus e dos apóstolos. Um exemplo é Simão Mago, que iludia o povo de
Samaria com artes mágicas (At 9.9). A cidade de Éfeso, por sua vez, era um
conhecido centro dessas artes. Ali, no início do reinado de Nero, um homem
chamado Apolônio Tianeo abriu uma escola e ensinava artes mágicas e coisas do
gênero. Taciano, em sua obra Contra
Graecos, menciona que a deusa
Diana dos efésios era considerada como sendo praticante de magia. Lemos em Atos 19 que os ex-adeptos da magia em Éfeso que
haviam se convertido ao cristianismo pela pregação de Paulo, queimaram seus
livros publicamente. Esses "livros" eram obras onde se ensinava a
prática dessas artes. Continham encantamentos, símbolos secretos e mágicos,
passos para a invocação de mortos e métodos para esconjurar demônios.
Provavelmente continham tabelas e fórmulas essenciais para a prática da
astrologia. Os "Papiros Mágicos", encontrados no Egito na década de
50 desse século, continham pedaços de pergaminhos com símbolos e fórmulas
mágicas chamados "cartas de Éfeso", que eram usados como amuletos
ou talismãs.(18) É alegado por alguns da "batalha espiritual" que
a queima dos livros de magia em Éfeso foi necessária pois a posse de tais
livros continuaria a dar validade aos pactos feitos pelos efésios com
entidades malignas e a dar autoridade a essas entidades sobre suas vidas,
mesmo que eles agora se tornaram cristãos. Queimar os livros fazia parte da
quebra das maldições que pesavam sobre eles por terem praticado artes mágicas
antes da sua conversão. Na cerimônia da queima dos livros, eles renunciaram
publicamente a todos esses compromissos e pactos que fizeram com os espíritos
malignos. Evidentemente, a queima dos livros de magia representou o
rompimento oficial e público dos efésios crentes com seu passado de
ocultismo. Entretanto, nada há no texto que apoie a idéia de que o evento foi
uma espécie de cerimônia de quebra de maldições. A queima dos livros foi o
resultado da consciência que os efésios agora tinham de que tais artes
mágicas era iniquidade diante de Deus, e que os livros que ensinavam essa
coisas eram perniciosos à humanidade e que, por mais caros que fossem (cerca
de cinqüenta mil moedas de prata), deveriam ser destruídos para não causar
mais danos a outros. O verso 19 que narra a queima dos livros deve ser
entendido à luz do verso 18, onde se diz que os efésios vieram confessar seus
pecados e revelar as suas obras más. A queima dos livros foi uma amostra de
seu genuíno arrependimento. Comentando nessa passagem, John Gill, um estudioso
puritano, diz o seguinte: Eles queimaram seus
antigos livros de mágica para mostrar o quanto agora os detestavam. Também,
para mostrar a genuinidade de seu arrependimento pelos pecados cometidos
nessa área, para evitar que esses livros não se tornassem uma armadilha para
eles no futuro e para que não fossem usados por outros.(19) Os livros, portanto, não foram queimados porque possuíam
qualquer poder maléfico intrínseco em si mesmos. Os motivos mencionados por
Gill para a queima estão em harmonia com o ensino das Escrituras em geral,
com o bom senso e com o que tem sido a prática normal da Igreja na história,
além de ser a interpretação mais natural e óbvia da passagem.(20) Existe ainda um outro motivo para a queima dos livros. Uma
parte essencial da prática de artes mágicas daquela época era o exorcismo, a expulsão de espíritos
malignos. Acreditava-se (como também se acredita hoje em alguns círculos
protestantes) que todas as doenças – particularmente as mentais – eram
causadas por espíritos maus que entravam nos homens. Grande parte do trabalho
dos exorcistas era tentar curar essas doenças pela expulsão dos espíritos
maus que as infligiam. Nos seus livros mágicos haviam fórmulas especiais para
esconjurar esses espíritos. Quando Paulo chegou em Éfeso, duas coisas aconteceram que
vieram contribuir para a queima dos livros: (1) Ele curou as enfermidades e
expulsou demônios usando apenas o nome de Jesus (At 19.11-12), em contraste
com os rituais elaborados e complicados dos exorcistas da época, como se
encontravam nos livros; (2) quando alguns exorcistas tentaram usar o nome de
Jesus e de Paulo para expelir um demônio de um homem, fracassaram
redondamente. O próprio demônio atestou a autoridade que havia no nome de
Jesus (At 19.13-16).(21) É possível que alguns dos efésios que haviam se
convertido ainda mantinham algum tipo de contato com artes mágicas. O
episódio dos exorcistas acabou por convencê-los. Ficou evidente a todos que a
mágica ensinada nos livros não passava de fórmulas vazias e inúteis. Como
escreve Marshall, A demonstração da
futilidade das tentativas pagãs de dominarem os espíritos maus levou muitos
dos convertidos efésios de Paulo a reconhecerem que a magia pagã, com a qual
ainda tinham contatos, era tão inútil quanto pecaminosa. Como conseqüência,
trouxeram os vários manuais de magia e as compilações de invocações e
fórmulas que ainda tinham, e fizeram com eles um rompimento final.(22) O verdadeiro poder contra Satanás estava apenas no nome de
Jesus. A queima dos livros, portanto, foi um testemunho do poder inigualável
de Jesus Cristo sobre as obras das trevas. Somente ele era o Senhor. Quanto a
isso, os efésios cristãos não tinham mais qualquer dúvida. O
ensino de Paulo sobre coisas sacrificadas a demônios Modernamente, podemos nos referir ao caso das comidas
"trabalhadas" nos terreiros de umbanda. De acordo com as crenças do
candomblé, umbanda e quimbanda, os orixás exigem comidas variadas, que devem
ser preparadas de acordo com rituais apropriados. Por exemplo, Exú gosta de
cebola e mel entregues no mato com velas acesas e aguardente. Ogum gosta de
feijoada, xinxim, acarajé e milho branco. Oxóssi, de peixe de escamas, arroz,
feijão e dendê.(23) Essas comidas são feitas de acordo com as indicações dos
demônios e a eles oferecidas. Para muitos cristãos, é uma questão aguda se
algum mal vai lhes ocorrer se acabarem por ingerir uma comida que foi "trabalhada".
Os coríntios estavam perturbados por um problema similar. Eles escreveram uma
carta a Paulo com várias perguntas, entre elas, se era lícito comer carne de
animais que haviam sido consagrados aos deuses pagãos.(24) Os coríntios
tinham em mente três situações: 1. Era lícito participar de um festival religioso num templo pagão e comer a carne dos
animais sacrificados aos deuses? Na antigüidade, o sacrifício de animais aos
deuses fazia parte da vida pessoal, familiar e social. O sacrifício ocorria
nos templos e a carne do animal sacrificado era dividida em três partes. Uma
parte, geralmente simbólica (podendo ser até uma mecha dos pelos!), era
queimada no altar em homenagem aos deuses. A segunda parte, incluindo
costelas e músculos, ia para o sacerdote. A terceira parte ficava com o
ofertante, e com ela, oferecia um banquete, geralmente em casamentos. Muitas
vezes, essas festas ocorriam no templo, no qual o sacrifício fora feito.(25)
Os crentes de Corinto certamente mantinham relacionamentos com amigos não-crentes,
e sempre havia a possibilidade de serem convidados a participar de uma destas
festas no templo, onde havia muita carne e bebida. Alguns daqueles cristãos
não tinham quaisquer escrúpulos de consciência em participar e comer carne
dos ídolos no templo dos ídolos, uma atitude que estava provocando os de
consciência mais fraca. 2. Era lícito comer carne
comprada no mercado público? A carne ali comprada poderia ser de animais
sacrificados aos deuses, cujo excedente dos altares havia sido repassado pelos
sacerdotes aos açougueiros da cidade. Devido à enorme quantidade de animais
sacrificados, uma parte deles acabava no mercado público, onde eram vendidos
como carne boa e barata. 3. Era lícito comer carne na casa de um amigo idólatra? Como na situação anterior, um
crente poderia ser convidado por um amigo pagão para comer um churrasco em
sua casa. A carne provavelmente seria de um animal que o amigo havia primeiro
consagrado ao seu deus, lá no templo. Um papiro grego muito antigo contém um
convite para uma dessas festas, nos seguintes termos: "Antônio, filho de
Ptolomeu, convida-o para cear com ele à mesa de nosso senhor
Serápis."(26) Quem quer que tenha sido o convidado, ele sabia que ao
sentar-se à mesa de Antônio, estaria comendo carne de um animal que havia
sido sacrificado ao deus Serápis. A questão aguda era se um crente poderia comer carne em
Corinto, correndo assim o risco de contaminar-se. William Barclay, um autor
bastante conhecido e citado, sugere que o problema era a crença, muito
difundida na antigüidade, de que os demônios estavam sempre procurando uma
brecha para entrar nos homens, para destruir seus corpos e mentes. Uma das
maneiras pela qual faziam isso era através da comida. Tais espíritos se
alojavam na comida e quando a pessoa a engolia, os demônios entravam nela.
Por esse motivo, diz Barclay, as pessoas consagravam os alimentos –
especialmente a carne – a algum deus bom. Acreditava-se que a presença de um
deus bom na carne formava uma barreira contra os maus espíritos.(27) O assunto dos sacrifícios de animais aos deuses é bem
complexo, e não poucos estudiosos discordariam de Barclay. Essa não parece
ser a razão primordial pela qual os pagãos consagravam comida aos seus
deuses. Sacrifícios eram praticados nas religiões de quase todas culturas
antigas, e no geral, visavam honrar uma divindade, apaziguá-la ou santificar
a oferta. Em algumas destas culturas, os sacrifícios estavam relacionados com
o culto aos ancestrais, alimentar os deuses e mesmo "comer os
deuses".(28) Paulo, ao discutir o assunto, em momento algum sugere que
haveria o risco de demônios penetrarem mesmo naqueles que comessem a carne
consagrada aos demônios nos próprios templos dos deuses pagãos. A questão que
incomodava os coríntios não era se estariam comendo demônios, mas se não
estariam participando direta ou indiretamente do culto ao ídolo. Note ainda
que quem introduz o conceito de que os demônios estão por detrás da idolatria
é Paulo. Provavelmente os coríntios nem estavam pensando nesses termos. A
explicação de Barclay, portanto, é menos do que convincente.(29) Os crentes de Corinto estavam divididos quanto ao assunto.
Um grupo deles estava passando por grande aflição. Eram ex-freqüentadores dos
templos, recém convertidos ao Evangelho. Por vezes, acabavam caindo no velho
costume de comer carne, encorajados pelo exemplo dos que achavam que não
havia nada de errado com isso. Como resultado, suas consciências os acusavam:
eles haviam acabado de consumir carne espiritualmente contaminada, consagrada
aos demônios em um templo pagão. Paulo, no tratamento que faz do assunto,
considera-os como "fracos", pois suas consciências eram
"fracas" (1 Co 8.7,9-12). O grupo contrário, a quem Paulo chama de
"dotados de saber" (1 Co 8.10), tinha já plena consciência de que
os ídolos dos templos pagãos nada eram nesse mundo, e que os animais a eles
ofertados, na verdade, continuavam a ser de Deus, o criador e Senhor de todas
as coisas. Assim, sentiam-se livres para comer carne, até mesmo nos festivais
pagãos nos templos. Os "fracos", estimulados por esse exemplo,
tentavam usar da mesma liberdade, mas com resultados desastrosos – suas
consciências não eram fortes o suficiente para permitir que comessem carne
livremente. O problema parece que girava em torno de duas questões.
Primeira, a relação entre os animais e os deuses, diante de cujas imagens os
animais eram consagrados, oferecidos e sacrificados. A carne desses animais
continuava a "pertencer" aos deuses após o ritual no templo, quando
estava pendurada no açougue público para ser vendida? Quem comesse dessa
carne estaria, mesmo de forma inconsciente, fazendo um pacto com os deuses?
Segunda, comer essa carne não implicaria numa espécie de participação à
distância dos crentes na adoração pagã e no culto aos deuses? Não deveríamos
evitar a todo custo aquilo que tem relação com os cultos idólatras? As respostas de Paulo são surpreendentes. O apóstolo
concorda com os "fortes" quanto ao conhecimento de que Deus é o
Senhor de tudo e que não há outros deuses ou senhores (1 Co 8.4-6). Mas
condena a falta de amor dos "fortes" para com os "fracos"
(1 Co 8.9-13). Deveriam limitar sua liberdade pela consideração à consciência
dos outros. Após dar o exemplo de como abriu mão dos seus direitos como
apóstolo de receber sustento por amor do Evangelho (1 Coríntios 9), e após
alertar os "fortes" contra a arrogância, usando o exemplo de Israel
no deserto (1 Co 10.1-15), Paulo responde às três principais indagações dos
Coríntios já mencionadas acima. O fato de que Paulo não invoca aqui a decisão do concílio
de Jerusalém (Atos 15) para resolver o assunto de vez tem intrigado os
estudiosos. Conforme lemos no livro de Atos, o concílio havia se reunido para
tratar das condições sob as quais os não-judeus poderiam ser salvos e
recebidos na Igreja. A polêmica havia sido causada por alguns judeus cristãos
da Judéia que foram até as igrejas gentílicas forçar os gentios a se
circuncidarem, e a guardar as leis de Moisés (naquela época, as mais
importantes eram as leis dietárias e o calendário religioso). Paulo e Barnabé
resistiram e houve uma grande discussão. O assunto foi levado aos apóstolos e
presbíteros em Jerusalém. Alguns fariseus que haviam crido em Cristo
insistiam na circuncisão e nas leis de Moisés para os gentios, mas Paulo,
Pedro e Tiago, através de seus testemunhos e do apelo às Escrituras,
convenceram o concílio de que os gentios eram salvos pela fé sem as obras da
lei (como também os judeus o eram), e que não precisavam se tornar judeus
para poder pertencer à Igreja de Cristo. O concílio, entretanto, em sua decisão,
resolveu incluir algumas condições éticas, entre elas, a de os gentios se
absterem das coisas sacrificadas aos ídolos (At 15.29). O concílio havia acontecido uns poucos antes de Paulo
escrever 1 Coríntios. O apóstolo estava perfeitamente consciente do conteúdo
da sua decisão. A pergunta é, por que não invocou aquela decisão para acabar
de vez com o problema em Corinto? Algumas respostas tem sido dadas. Peter
Wagner, por exemplo, sugere que Paulo não havia ficado satisfeito com essa
decisão, considerando-a inadequada e superficial. Para Wagner, a decisão do
concílio havia sido equivocada por tratar o comer carne sacrificada aos
ídolos como algo imoral, quando na
verdade era algo neutro.(30)
Entretanto, a melhor solução tem sido observar que as condições éticas
requeridas pelo concílio eram para ser observadas num ambiente onde houvesse
judeus e gentios. Eram regras a ser seguidas pelos gentios cristãos numa
igreja onde houvesse judeus cristãos. Elas não eram uma lei moral geral e
válida em todas as circunstâncias, mas uma orientação para quando a
abstinência se fizesse necessária para preservar a unidade, conforme sugere
Calvino em seu comentário em Atos 15. A situação de Corinto era diferente. O problema lá não era
o mesmo tratado no concílio de Jerusalém. O problema não era os escrúpulos de
judeus cristãos ofendidos pela atitude liberal de crentes gentios quanto à
comida oferecida aos ídolos. Portanto, a solução de Jerusalém não servia para
Corinto. É provavelmente por esse motivo que o apóstolo não invoca o decreto
de Jerusalém.(31) Antes, procura responder às questões que preocupavam os
coríntios de acordo com o princípio fundamental de que só há um Deus vivo e
verdadeiro, o qual fez todas as coisas; que o ídolo nada é nesse mundo; e que
fora do ambiente do culto pagão, somos livres para comer até mesmo coisas que
ali foram sacrificadas. 1. A primeira pergunta dos coríntios havia sido: era lícito participar de um festival
religioso num templo pagão e ali
comer a carne dos animais sacrificados aos deuses? Não, responde Paulo.
Isso significaria participar diretamente no culto aos demônios onde o animal
foi sacrificado (1 Co 10.16-24). Paulo havia dito que os deuses dos pagãos
eram imaginários (1 Co 10.19). Por outro lado, ele afirma que aquilo que é
sacrificado nos altares pagãos é oferecido, na verdade, aos demônios e não a
Deus (10.20). Paulo não está dizendo que os gentios conscientemente ofereciam
seus sacrifícios aos demônios. Obviamente, eles pensavam que estavam servindo
aos deuses, e nunca a espíritos malignos e impuros. Entretanto, ao fim das
contas, seu culto era culto aos demônios. (32) Paulo está aqui
refletindo o ensino bíblico do Antigo Testamento quanto ao culto dos gentios: Sacrifícios ofereceram
aos demônios, não a Deus... (Dt 32.17). O princípio fundamental é que o homem não regenerado, ao
quebrar as leis de Deus, mesmo não tendo a intenção de servir a Satanás,
acaba obedecendo ao adversário de Deus e fazendo sua vontade. Satanás é o
príncipe desse mundo. Portanto, cada pecado é um tributo em sua honra. Ao
recusar-se a adorar ao único Deus verdadeiro (cf. Rm 1.18-25), o homem acaba
por curvar-se diante de Satanás e de seus anjos.(33) Para Paulo, participar
nos festivais pagãos acabava por ser um culto aos demônios. Por esse motivo,
responde que um cristão não deveria comer carne no templo do ídolo. Isso
eqüivaleria a participar da mesa dos demônios, o que provocaria ciúmes e zelo
da parte de Deus (1 Co 10.21-22). Paulo deseja deixar claro para os coríntios
"fortes", que não tinham qualquer intenção de manter comunhão com
os demônios, que era a atitude deles em participar nos festivais do templo
que contava ao final. Era a força do ato em si que acabaria por estabelecer
comunhão com os demônios.(34) 2. Era lícito comer carne
comprada no mercado público? Sim, responde Paulo. Compre e coma, sem nada
perguntar (1 Co 10.25). A carne já não está no ambiente de culto pagão. Não
mantém nenhuma relação especial com os demônios, depois que saiu de lá. Está
"limpa" e pode ser consumida. 3. Era lícito comer carne na casa de um amigo idólatra? Sim e não, responde Paulo. Sim, caso não haja, entre os
convidados, algum crente "fraco" que alerte sobre a procedência da
carne (1 Co 10.27). Não, quando
isso ocorrer (1 Co 10.28-30). O ponto que desejo destacar é que para o apóstolo Paulo a
carne que havia sido sacrificada aos demônios no templo pagão perdia a
"contaminação espiritual" depois que saia do ambiente de culto. Era
carne, como qualquer outra. É verdade que ele condenou a atitude dos
"fortes" que estavam comendo, no próprio templo, a carne
sacrificada aos demônios. Mas isso foi porque comer a carne ali era parte do
culto prestado aos demônios, assim como comer o pão e beber o vinho na Ceia é
parte de nosso culto a Deus. Uma vez encerrado o culto, o pão é pão e o vinho
é vinho. Aliás, continuaram a ser pão e vinho, antes, durante e depois. A
mesma coisa ocorre com as carnes de animais oferecidas aos ídolos. E o que é
verdade acerca da carne, é também verdade acerca de fetiches, roupas,
amuletos, estátuas e objetos consagrados aos deuses pagãos. Como disse
Calvino, Alguma dúvida pode surgir
se as criaturas de Deus se tornam impuras ao serem usadas pelos incrédulos em
sacrifícios. Paulo nega tal conceito, porque o senhorio e possessão de toda
terra permanecem nas mãos de Deus. Mas, pelo seu poder, o Senhor sustenta as
coisas que tem em suas mãos, e, por causa disto, ele as santifica. Por isso,
tudo que os filhos de Deus usam é limpo, visto que o tomam das mãos de Deus,
e de nenhuma outra fonte.(35) CONCLUSÃO Devemos sempre nos lembrar da diferença fundamental entre
o conceito pagão e o conceito cristão quanto ao emprego de "coisas"
com sentido religioso. As religiões empregam objetos e utensílios em seus
cultos ou práticas como símbolos de realidades espirituais ou portadores de
poderes mágicos. O culto cristão, em contraste, é bem mais simples. Ele
emprega apenas dois símbolos materiais, a água do batismo e os elementos da
Ceia (pão e vinho). A atitude do paganismo para com esses objetos é também
diferente da atitude dos evangélicos para com seus símbolos (batismo e Ceia).
Enquanto que para os evangélicos a água, o pão e o vinho são símbolos que têm
seu valor e sua função apenas no momento da ministração dos sacramentos, na
prática da magia, no ocultismo, nas religiões afro-brasileiras e no
catolicismo popular, os objetos cúlticos continuam a manter uma relação vital
para com as entidades e realidades espirituais aos quais estão associados,
mesmo após a sua consagração durante os rituais. Por exemplo, uma rosa que
foi ungida continua a emanar forças positivas mesmo após o ritual de
consagração. Um amuleto que foi "carregado" de fluidos positivos
continuará a emaná-los ad infinitum.
Uma comida que foi "trabalhada" por uma mãe de santo num terreiro
de umbanda vai afetar quem a comer, fora do terreiro. Para os evangélicos, em
contraste, uma vez encerrada a Ceia, o pão é pão comum e o vinho, vinho
comum. Na verdade, eles permaneceram sendo vinho e pão comuns durante a
celebração da Ceia. Aquele uso especial para o qual foram separados, cessa
após a celebração. Nenhum pastor pode, fora do momento da celebração
(suponhamos, durante o jantar em casa de amigos), tomar pão e declarar:
"Disse Jesus, isso é o meu corpo, comei deles todos". Água, pão e
vinho perdem sua simbologia fora do culto. Para o paganismo, entretanto, a
profunda relação entre objetos cúlticos e as realidades e entidades
espirituais associadas a eles é permanente. Portanto, os evangélicos que conhecem a sua Bíblia não são
superticiosos quanto a objetos oriundos de outras religiões. Entretanto,
acredito que devemos ter bastante cautela quanto a objetos assim. Eu mesmo
não guardo em casa ou no ambiente de trabalho nenhuma dessas coisas. Não que
tenha receio que elas poderão dar aos demônios, a quem foram oferecidas,
algum tipo de poder sobre mim e minha família. Estou seguro e protegido no
poder do meu Salvador Jesus Cristo. Mas, pelas seguintes razões, que ofereço
como orientação geral quanto ao uso desses objetos: 1) Devemos evitar ter e exibir esses objetos quando os
mesmos forem uma tentação real para a idolatria ou ocultismo. Novos
convertidos egressos da idolatria e cultos afro-brasileiros poderão ser
tentados a retornar às práticas antigas, estimulados pelos símbolos do seu
passado religioso. Devemos evitar toda e qualquer possibilidade de sermos
tentados nessa área, bem, como evitar sermos causa de tropeço para outros.
Foi isso que o apóstolo Paulo recomendou aos "fortes" de Corinto (1
Co 10.31-33). 2) Devemos evitar esses objetos se os mesmos evocam
lembranças do nosso passado. Muitos de nós gostariam de esquecer períodos e
eventos acontecidos nos tempos de ignorância. Deus nos deu a bênção do
esquecimento. Livremo-nos, pois, de tudo que mantém vivas lembranças assim. 3) Devemos evitar esses objetos se os mesmos servirem de
estímulo a outros a que façam o mesmo, sem que estejam firmes em suas
consciências de que tais objetos, em si, nenhum mal trazem. |
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