Um ponto em conflito
O desafio de qualquer tratado
exegético no campo da sexualidade ou da homossexualidade é sua
capacidade de alcance e compreensão
dos fatores culturais, éticos e religioso que formam a cultura de um povo. Tentar aprofundar uma reflexão neste campo significa poder penetrar todas as esferas
de um conjunto de crenças, costumes,
leis e tradições, dentro das quais são traçados os perfis de um “modus vivendi”. É preciso reconhecer
que aqui se constitui a dificuldade maior. Sempre que alguém volta para o passado, os arquétipos
atuais e sua visão da história cultural podem condicionar sua pesquisa e volta ao passado. Nosso
estudo visa oferecer uma reflexão
sobre as questões da sexualidade e homossexualidade, como contributo para uma visão desta temática
na Bíblia.
A homossexualidade é conhecida na linguagem antiga como uranismo1 inversão
genital. Na tradição
mitológica antiga eram conhecidos
dois tipos de “uranismo”: a) a inversão artificial, que significava apenas um vício da relação homossexual; b) a
inversão- perversão, considerada uma
degeneração mental. Dentro destes dois campos, há inclinações para o homossexualismo com rejeição ao sexo oposto e há outra forma de homossexualismo que é a indiferença
ao sexo oposto. Para estes, a vida sexual normal produz um cansaço, repulsa
e até impotência. A partir desta situação,
instala-se um comportamento genital anômalo. O amor uranista
(invertido) é uma caminhada normal,
na esfera psíquica,
uma vez que ele possui todas as fantasias, caprichos, bem como paixão e violência. Na prática, no entanto, se efemina nos homens e se masculiniza nas mulheres. Estudos
revelam que a vida sexual
* Extraído da Revista “Estudos
Bíblicos” (Vozes).
1 A origem do termo “uranismo” para caracterizar o
homossexualismo é obscura. Platão afirmava que
Urânia era a ninfa gerada por Urano, mas sem mãe. Urânia era a senhora
do universo, representada com um
globo terrestre em suas mãos. Ela tinha uma varinha, com a qual indicava a
direção dos astros. Outra fonte da
origem do nome pode vir da mitologia de Urano, o deus do cosmos, filho de Gea
(terra), para outras filho do Mar.
Segundo Cícero, Urano é pai de Vênus com Hémera. Mais tarde, Urano é mutilado por Cronos e das gotas
de seu sangue nascem gigantes
e ninfas (Cf. Spasa Calpe, “Uranos”).
pervertida dura enquanto subsistir a força genital.
As origens do homossexualismo permanecem desconhecidas, mas a mitologia antiga já conhecia esta
forma de comportamento. Platão definia três formas de ser humano: a) o homem; b) a mulher;
c) o heterógino. Na composição do ser humano, ainda dentro da mitologia helenista, os seres tinham duas
faces, quatro mãos, quatro pés, dois
sexos, cada qual na posição inversa (era um duplex). O ser cujos dois sexos fossem masculinos era homem; os dois sexos femininos
era mulher e havia uma terceira opção, que tinha um sexo masculino e outro feminino (heterógino). Assim fazia-se a explicitação
da homossexualidade dentro da cultura grega. Uma briga de Zeus com os humanos provocou o castigo dos mais fracos. Zeus tomou os humanos e os partiu pela metade,
misturando suas partes. Daquele
momento em diante, cada parte busca sua outra metade no desejo de reconstruir a felicidade original2. Os que
tinham os dois sexos masculinos, .procuram outro homem como sua metade original; os que tinham os dois sexos
femininos, buscam uma mulher e os que
tinham dois sexos diferentes, procuram o sexo oposto para realizar seu complemento.
O homossexualismo é conhecido igualmente nas culturas romana e judaica.
No código de ética judaica,
o comportamento homossexual era considerado um desvio de conduta gravíssimo, sofrendo penalidade capital: “Se um homem se deitar com outro homem como se fosse com uma mulher,
ambos cometem uma perversidade
e serão punidos com a morte – são réus de morte” (Lv 20,13). Na cultura romana, o apóstolo Paulo faz referência a
este estado ético que, para seus
esquemas mentais, era uma afronta ao estado
natural: “Por isso, Deus os entregou às paixões aviltantes: suas mulheres mudaram as relações naturais
por relações contra a natureza; do
mesmo modo os homens, deixando a relação natural com a mulher,
arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens e
recebendo neles mesmos o preço da
sua
aberração” (Rm
1,26-27).
Desta
forma, nota-se a antigüidade do
homossexualismo. A cultura grega cria mitos para explicar
esta forma de comportamento. A
cultura romana cria leis jurídicas para coibir a incidência destes casos e o judaísmo estrutura um código de
ética que insere a pena máxima. No
entanto, a homossexualidade, independentemente de aceita ou condenada, constitui-se, ainda hoje, um fenômeno
obscuro, uma trilha sinuosa e sem saída.
1.
A
educação familiar na formação da sexualidade
2 Cf. Mazzarolo, I. Paulo de Tarso, tópicos
de antropologia bíblica.
Porto Alegre: EST, 1977, p. 65-66.
A educação familiar é o elemento primário na formação de
uma sociedade. É na esfera familiar
que se encontram os resquícios de uma
moral doméstica. Esta configura uma compreensão da pessoa, homem ou mulher,
no seu comportamento social. A paidéia (educação) grega procurava integrar
os indivíduos numa forma comum de compreensão e visão de família, sociedade
e mundo. Numa afirmação de Diógenes, a educação é
graça para o jovem, consolo para o
ancião, abundância para o pobre e ornamento para o rico (Diógenes, Laertius, vi, 68)3. Para muitos
mestres antigos era preferível ser
cego do que não ser educado ou poder freqüentar uma academia. Na dimensão
helenística do pensamento, a educação conduz à virtude, e esta torna-se uma arma
que jamais pode ser abandonada ou perdida (Diógenes, Laertius, vi,12-13)4.
As sociedades antigas,
especialmente as ocidentais, pregavam uma
moral familiar monogâmica. No entanto, quer na Grécia antiga e mesmo na tradição judaica, eram
conhecidos os costumes de um homem ter uma mulher oficial e muitas concubinas, as quais moravam sob o mesmo teto e tinham os
mesmos direitos que a mulher oficial.
Os filhos desta conviviam com os filhos das concubinas sem diferenças, com a única restrição de que, salvo exceções,
os filhos das concubinas não herdavam
bens diretos5. O adultério pesava
sempre sobre a mulher, uma vez que para o homem esta prática era um certo direito.
a) A administração doméstica
A teoria da oikou nomia (lei da casa) foi educando
a mulher para uma esfera interna do
lar, ainda que, como escrava, ela tivesse que
cultivar os campos e tomar conta dos rebanhos (cf. Ct 1,5-6). “Tanto quanto possível, as moças eram
separadas dos rapazes e cultivadas em
suas casas na absoluta ignorância de tudo o que se passava no mundo”6. A mulher nas culturas antigas era educada
a não se inteirar dos assuntos
do marido, nem mesmo das relações comuns
entre as famílias. “Quando a família recebia um convite para visitar
outra, os homens e as crianças podiam ir, mas, salvo exceções, as mulheres ficavam em casa. E
quando os homens tinham uma mulher
como convidada, em sua casa, a esposa
não podia participar da companhia”7.
b) O matrimônio na sociedade israelita
Herdeira da cultura babilônica e egípcia, a sociedade
israelita proclama o matrimônio como monogâmico (uma só mulher).
O
3 Cf. Barclay, W. Hellenistic thought
in the New Testament times – the Cynic, the way of renunciation – Expository Times, 71(1959), p. 373.
4 Ibidem
5 Mossé, C. La femme dans la Grèce Antique. Paris:
Complexe, 1991, p. 22.
6 Stegemann, W. “Paul and the sexual mentality of his world”.BThB, n. 23 (1993),
p. 22.
7
Brooten, Bernardette. Women
leaders in the ancient sinagogue. California: Scholarpress, 1982,
p. 137.
Código de Hamurabi (por volta de 1700 aC) determinava que o casamento do homem seria com uma única
mulher. Ele só poderia tomar uma segunda esposa (convivendo com a primeira)
se a primeira fosse estéril8. Na tradição israelita
patriarcal (cf. Gn 12-50) encontra-se
o caso de Abraão que, por Sarai ser uma mulher estéril, tem a permissão de tomar uma serva egípcia, chamada Agar, para prolongar
sua descendência (Gn 12,5ss). Mais tarde, a primeira esposa Sarai lhe dá Isaac, que passa a ser
o filho da promessa (Gn 17,17-19).
Na sociedade israelita, a filha não-casada está sob a
tutela do pai, e a esposa sob a dependência do marido.
c) O paradigma da monogamia
O relato da Criação de Gn 2,21-24 apresenta o homem
casado com uma só mulher, assim
também são casados alguns patriarcas como
Noé (Gn 7,7); já Lamec tem duas mulheres (Gn 4,19). Todo homem deveria ter uma só mulher diante da lei, mas poderia ter outras,
não oficiais, que fossem livres
ou escravas, em um número
tal que ele as pudesse sustentar seus filhos.
Na própria tradição patriarcal bíblica encontram-se
exemplos de poligamia (diversas
mulheres). Jacó trabalha
sete anos como pagamento
por Raquel, mas é enganado pelo sogro que lhe dá a irmã mais velha, Lia. Ele trabalha mais sete anos para conseguir a
esposa de seus sonhos, mas acaba
ficando com as duas irmãs por esposas (Gn
29,15-30). No período da monarquia, os reis de Israel tinham uma só esposa oficial, mas tinham muitas
concubinas. A monogamia era apenas
uma questão de fachada. O número de mulheres era tão grande e variado como os desejos e possibilidades do homem. No início da legislação judaica não havia
limites. “Numa tentativa de regulamentação
tardia, o Talmud fixava em quatro mulheres para um homem comum e dezoito para um rei. Na verdade, era uma questão absolutamente teórica”9. De
igual modo, nas famílias islâmicas, o número
de mulheres é relativo ao poder econômico do homem. Neste aspecto, a legislação social depende
exclusivamente dos direitos do homem.
2. A educação religiosa na família
A moral doméstica determina, aos poucos, a moral
religiosa. Diante de situações concretas
e existenciais nascem imperativos morais que se transformam em padrões de
comportamento religioso. Muitas
vezes, dentro de uma conflitividade pessoal ou comunitária acontece
o surgimento de uma apocalíptica religiosa, uma certa luta
8 De Vaux, R. Le Istituzioni dell’Antico Testamento.Torino: Marietti, 1977, p. 20.
9
De Vaux, R. Idem, 35.
entre
as forças divina e humana, entre a fé em Deus e os temores de Satã. Nestes tumultos
existenciais, muitas vezes,
elaboram-se as teses
principais da Transcendência, de Deus e do ser humano10.
Na esfera religiosa, a tradição veterotestamentária
encontra a reforma de Esdras (Esd
9-10), que institui a lei da raça pura e os direitos
de divórcio pelos mesmos motivos. Abre-se, a partir do séc. IV aC, uma ruptura ainda maior na sociedade judaica
quanto à segregação dos sexos e ao tratamento da
mulher. Aos poucos, esta forma de
procedimento passa a tomar o caráter de cultura, sendo introjetado na educação
religiosa familiar e comunitária.
3.
A
educação social – a sexualidade da mulher a serviço do Estado:
Na esfera social,
a sexualidade está muito vinculada
ao casamento, às relações familiares referentes à pratica
do casamento e à finalidade última das relações
sexuais. No mundo helenístico são encontrados diferentes conceitos, de acordo com as escolas de pensamento
e também de acordo com os períodos históricos. Uma teoria pregava o casamento para os “maduros”, descartando os outros:
“Para o jovem,
ainda não; para o velho,
não mais”.
Na esfera social, a mulher estava a serviço do Estado,
enquanto ela emprestava seu corpo
para gerar filhos para a guerra, para a defesa
do rei e para a guarda dos palácios dos nobres (Cf 1Sm 8,11ss)11. O casamento, na teoria platônica, tinha
como finalidade principal gerar
filhos para o Estado. A finalidade do matrimônio era apenas homologar a legitimidade dos filhos na relação sexual. Os filhos das concubinas e as próprias
concubinas participavam em tudo da
vida familiar, mas não tinham os mesmos direitos que as mulheres oficiais
e os filhos das mesmas12.
Na esfera social, a mulher recebia um espaço que não era espaço. Ela tinha uma área de comando (os
cuidados da casa e dos filhos) que
não era poder. Ela, dentro de casa ou fora dela, dependia sempre do seu esposo. Por isso, a estrutura social criava uma separação
e segregação dos sexos, que não era outra coisa senão submissão13.
10 Kittel, G. Die Religionsgeschichte und das Christentum. Tübingen: Verlag, 1931,
p. 62.
11 Mazzarolo, I. Paulo de Tarso; tópicos de
antropologia bíblica. Porto Alegre: EST, 1997, p. 49. Na verdade, quase todas as nações antigas concediam direitos
irrestritos aos homens porque estes tinham direitos sociais
sobre as mulheres e estas estavam a serviço da
instituição.
12 Id., ibid.,
p. 49-50.
13 Hobbs, T.R. “Man,
women and hospitality (2Kings 4,8-36)” in: BThB, n. 23 (1993),
p. 93. “Male power in the
public sphere is rightly acknowledged. In the public sector sexes are usually
segregated and deference is given to the male by his female (Friedl, 1968,43).
But Friedl makes a significant point beyond
this. In the Mediterranean world, if the family is the most significant social
unit, then the private, and not the public sector, is the sphere in which the relative
attribution of power to males and females is of the greatest
importance... (note 2Kings 4,23)” citado
por Mazzarolo, I. Paulo de Tarso, p. 53-4.
4. A sexualidade a serviço de interesses:
Todas as culturas
antigas incentivavam o casamento e condenam,
paralelamente, o celibato e a esterilidade. O casamento servia para evitar aquilo que nenhuma aceitava: o lesbianismo e
o homossexualismo, ainda que
presentes em todas elas. O celibato masculino
e mais ainda o feminino era mal visto, em virtude destes perigos. Para evitar que jovens indecisos retardassem sua opção
pelo casamento, os gregos criavam as
gymnopedias (danças nuas). Essas danças
provocavam os jovens a assumirem o matrimônio na fase central de sua juventude. Pesavam sobre esses interesses os
temores dos desvios da sexualidade.
Se o não-casamento dos rapazes era perigoso por propiciar
o surgimento de vícios, o celibato das moças era impensável. As guerras,
as calamidades e as pestes dizimavam mais homens do que mulheres. Nisto, o ventre materno era visto como o receptáculo
da continuidade da espécie, da
descendência e do povo. Uma mulher que recusasse casar e ter filhos era
considerada amaldiçoada por Deus. Na
verdade, em sociedades androcêntricas, cabia à mulher os papéis de ser escrava do lar, de gerar filhos e de trabalhar14.
5. As reações contra
o androcentrismo bíblico
A sociedade israelita, particularmente no tempo da reconstrução das tradições com Esdras,
estabelece regras próprias no relacionamento
com a mulher. Se no pré-exílio as coisas não eram favoráveis à mulher, depois ficam piores. O período da
reconstrução de Jerusalém, conhecido como a “reforma de Esdras”, serviu
para que um grupo de
sacerdotes e rabinos estabelecessem como regras básicas para a mulher sua dependência absoluta do marido. A
família determinava com quem a moça
podia casar. A expressão erótica do amor era impensável, particularmente por parte da moça. No entanto,
a sexualidade, que desempenha um papel importante na formação das relações
humanas, tornava-se um pesadelo, uma frustração
e um tédio. É na sexualidade que o ser humano expressa a integração das forças e potencialidades que permitem a sensação
do fator erótico15. Desta
forma, o livro dos Ct declama o corpo e suas
partes como o espaço do amor. O ser humano não tem corpo, ele é corpo. “O corpo é o ser, em sua totalidade
e em todas as suas expressões, que passa do eros ao agápe”16.
a)
A mulher como propriedade da família
14 Brooten, Bernardette. Women leaders in the
ancient synagogue. California: Scholarpress, 1982, p. 59. 15 Andreola, J. e Mazzarolo,
I. Cântico dos Cânticos, a mais bela canção. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 22.
16
Id., ibid.
No Decálogo (Ex 20,17), a mulher é tratada como uma das
posses do marido. Ela não tem
existência em si mesma. Ela só existe na submissão
ao pai, se solteira; na submissão ao marido, se casada, e na submissão ao seu patrão, se escrava.
A mulher não se pertencia. O seu destino estava nas mãos de seus possessores. Assim, neste livro dos Ct ela reclama:
“Não me olheis com desdém,
por ser morena! Foi o sol que me queimou, pois os filhos da minha mãe, aborrecidos comigo, puseram-me a guardar
as vinhas, e a minha própria vinha17
não pude guardar” (Ct 1,6). Os irmãos (homens)
tinham ascendência sobre as irmãs e atribuíam às mesmas as tarefas de cuidar dos campos, dos rebanhos de
cabras, expondo seu corpo ao sol, ao
calor e ao frio, sem condições de cultivar sua beleza. O tempo da mulher cuidar do seu corpo é trocado
pelo tempo que ela fica nos campos.
b) A mulher, sexo e divórcio
Com a reforma
de Esdras, no período pós-exílico, o judaísmo “puro” torna-se o símbolo do judaísmo
elitista e excludente dentro da tradição
deste povo. A lei dos matrimônios passa a ser a lei da raça pura. Argumentando razões de culto, de fé e de obediência aos estatutos, Esdras e os sacerdotes responsáveis pela restauração judaica excluem todos os que não eram
legitimamente judeus. Por princípios raciais,
determinam que todos os judeus casados com mulheres não judias as mandem embora dando-lhe a carta de divórcio (Esd 9-10).
A família, castradora dos sentimentos dos jovens, moças e rapazes,
passa a ter outro elemento
para oprimir mais estes sentimentos. A ganância dos irmãos por
dinheiro faz logo pensar na forma de comercializar os sentimentos das moças: “Temos uma irmãzinha, ainda não tem seios. O que
faremos por nossa irmã, quando alguém pedir sua mão? Se ela é uma muralha,
vamos construir-lhe ameias de
prata; se é uma porta, vamos reforçá-la com pranchas
de cedro” (Ct 8,8-9).
c) Sexualidade = manipulação e frustração
Em sociedades onde a formação dos jovens está nas mãos de interesses, a sexualidade sofre
perturbações e desvios. O livro dos Ct é o melhor exemplo
bíblico das manipulações da sexualidade determinadas pelos interesses familiares
ou políticos. De um lado temos a ganância dos irmãos, os quais não se perguntam
se a irmãzinha vai ser feliz ou não, mas se perguntam pela quantia que
17 A vinha, no contexto bíblico, pode significar
campo, pode significar cultivo de videiras ou parreiras e também,
como aparece neste livro dos Ct, a vinha pode ser o próprio
corpo.
podem
ganhar. Do outro está o rei – ou os ricos – que, com seus direitos de semideus, pode pedir qualquer
moça para seu harém no palácio18.
Qualquer moça que esteja num átrio de concubinas será sempre uma concubina. O amor pode vir misturado com o vinho, licores e perfumes, mas a cama na qual ele
se complementa no ato sexual, será
sempre a expressão da exploração, será sempre uma cama fria19. O beijo, manifestação sensível do amor,
expressão do desejo da paixão20,
não será manifestação de alguém que ama, mas
de alguém que explora. Se os perfumes, fragrâncias e vinhos criam um ambiente de deleite, sensualidade e
ternura (Ct 1,3; Ez 16,8; 23,17; Pr 7,18), a frieza do amor pode produzir o desconforto, o tédio e a frieza sexual.
Em algumas culturas antigas, os gestos afetivos de
saudação eram reprimidos por serem
considerados obscenos. Em outras, os gestos
afetuosos podiam ser manifestados, mas em alguns lugares reservados. Gaiser afirma que os costumes variavam: “No antigo Egito, o contato de dois corpos era pela
aproximação dos narizes, o qual
servia mais a uma função de cheirar que de tocar. Mas no Oriente Próximo, até onde os documentos nos permitem recuar, os amantes se beijavam nos lábios. No mito
sumério de Enlil e Ninlil, a virgem
Ninlil afirma: ‘Meus lábios estavam tão próximos (no encosto dos narizes) e no entanto eu nunca fui
beijada’. Algumas pinturas sumérias mostram
os amantes beijando-se nos lábios. No mito ugarítico
de Shacar e Shalin, El aparece unido a duas mulheres”21.
Um outro elemento
a ser observado é a chamada espiritualização da sexualidade. De modo
particular na leitura do livro dos
Ct foi um fator marcadamente unidirecional22. A interpretação mística do texto fez ver que a vinha da
amada é a Lei eterna, o Deus de Israel,
a Assembléia de Israel
ou o nome do Eterno23.
d) O confinamento dos sentimentos e o homossexualismo
A felicidade não pode ser comprada ou vendida. A
antropologia do amor perpassa todas
as esferas e estruturas do ser humano. É preciso deixar que o amor, a afetividade e a sexualidade acordem no
18 Alguns autores argumentam que ser concubina do
rei era uma grande honra para qualquer moça, mas nenhum deles se pergunta como era a vida da concubina. O rei
enchia a concubina de brincos e argolas, mas quanto mais pingentes, mais peso e dominação, menos
liberdade e amor.
19 ANREOLA, J. e MAZZAROLO, I. Cântico dos Cânticos. São Paulo: Paulinas, 1994, p.46.
20
VV.AA. Le Cantique
des Cantiques. Paris:
Gabalda, 1963, p. 62.
21
Gaisser, F.J. The Song
of Songs. Minneapolis: Fortress, 1994, p. 41.
22 Andreola, J., Mazzarolo, I. Cântico dos
Cânticos. São Paulo: Paulinas, 1994. p.14-15, mostramos nestas páginas a ênfase que foi dada a uma
leitura mística, para evitar uma leitura mais profética da história. Um simbolismo teórico e místico proveniente
de interpretações rabínicas deteriorou uma possível leitura antropológica ou sociológica do texto.
23 Grad, A-D. Le véritable Cantique de Salomon.
Paris: Maisonneuve, 1970, p. 105. Na interpretação de Grad, os Rabinos Aba, Hiya e Yohanan, a vinha da amada era a Lei
do eterno, e ela não pode ser guardiã desta lei porque
teve que ser guardiã da vinha de ídolos
(seus irmãos eram pagãos e
idólatras).
seu tempo correto (Ct 8,4). Despertar
a sexualidade de modo interesseiro, usá-la para ter proveito
econômico ou por interesse provoca distúrbios comportamentais na vida.
Sobre a moça pesam os preconceitos da virgindade, da pureza e da castidade. Ela tem a obrigação de apresentar o selo da integridade
física, ser um jardim fechado, uma fonte lacrada (Ct 4,12). E para manter toda essa estrutura de castração e
dominação ela tem que usar o véu.
Este serve para esconder, velar e cercear. Na
festa de núpcias, ela se apresenta ainda velada ao seu noivo, mesmo para indicar que não se havia revelado a
ninguém (Ct 4,1.3; 6,7)24. Ela,
ainda que esposa do rei neste Cântico, jamais é mostrada como rainha. Ela recebe elogios, ela é formosa,
mas não recebe o título. Para
Tournay, no folclore árabe da Síria, uma jovem que desposasse um rei, poderia
automaticamente considerar-se rainha25.
O amor é forte como a morte26. Esta expressão revela a força
do amor e os perigos dos seus desvios. Este amor mal orientado se transforma em ciúme e em desequilíbrio27. O amor e a paixão profundas
jogam com os extremos. “Guardai-vos, pois, de esquecer a aliança que o Senhor, vosso Deus, fez convosco, fazendo imagens
ou figuras de tudo o que o Senhor
vosso Deus vos proibiu. Porque o Senhor
vosso Deus é fogo abrasador, é um Deus ciumento” (Dt 4,23- 24).
Um juramento de amor envolve uma totalidade e não as
partes. Se esta totalidade entrar em
crise, o amor pode transformar-se em ódio,
vingança, destruição. “Põe-me como um selo sobre teu coração, como um selo sobre teu braço. Porque é forte o amor como a morte, e a paixão é tão violenta como o abismo:
suas centelhas são incendiárias, são labaredas
intensas” (Ct 8,6).
Conclusões:
A questão da homossexualidade está ligada a um conjunto
de fatores que envolvem o problema da
afetividade e sexualidade. A homossexualidade
é uma realidade presente em todos os tempos e
culturas. Ela resulta de algum fenômeno biológico, mas se transforma numa fonte de ciúmes. A moral judaica
condena a homossexualidade (Lv
18,22), como condena a esterilidade, o onanismo e o celibato por não gerarem filhos e não prolongarem a
descendência (Gn 15,15; 16,1; 1Sm
1,3-7; Sl 127,3). Toda a relação sexual deve ter como meta procriar. O ato sexual não pode ser compreendido como
prazer carnal, mas como ato gerador de vida. A sexualidade é um fator
24
Tournay, R. Le Cantique des Cantiques. Paris: Cerf, 1967, 385. 25 VV.AA. Le Cantique des
Cantiques. Paris: Gabalda, 1963, p.382. 26 Tournay,
R. Cantique des Cantiques. Paris: Cerf, 1967, p. 153.
27 Id., ibid. Veja o amor de Deus transformado em ciúme: Ez 8,3-5; 16,38.42; Dt 4,24; 5,9; 32,16; Ex
20,5.
integrador da personalidade e das expressões da pessoa na sua relação com a sociedade. Em qualquer
aspecto que ela se desintegre, ela compromete o convívio comunitário e social.
Isidoro Mazzarolo PUC-Rio
Nenhum comentário:
Postar um comentário